28 de fevereiro de 2007

Jovita Sena Mendes ou Maínha

Maínha faz aniversário hoje. É pisciana. Ela vive de cuidar das plantas e deve estar, nesse momento, no fogão de lenha cozinhando ou servindo almoço para os netos. Parabéns, Mainha! Lembram do post Palmolive para cabelos oleosos? Exato. Lembram de minhas dores de barriga? Exato. Façam suas homenagens!!!

Conto de Fadas - Parte I

Ali pelos 17, eu estudava em Santa Maria da Vitória e morava numa república. Por aquela época, eu trabalhava no Banco do Brasil e não estava gostando de morar com aquele pessoal. Muita neurose junta. Foi quando uma amiga, irmã de uma colega de sala, disse-me que seu irmão, Lulu, havia se separado e estava morando sozinho. Lulu era arquiteto e topógrafo. Sua casa, ele mesmo a projetara. Descrevo-a. A casa ficava a 20 metros do Rio Corrente. Bastava sair do jardim e descer para o rio. Por esse tempo, eu não sabia nadar, o que tornava inútil tal proximidade. Lulu desenhara a casa de modo que ficasse recuada. A parte da frente virou jardim. Havia uma sala, dois quartos relativamente grandes, um pequeno quintal, o escritório do meu amigo, e uma cozinha em dois ambientes. A casa era toda branca. As janelas, elas se abriam em duas bandas e tinham contornos arredondados na parte superior. As laterais da casa também eram ajardinadas. O telhado era em duas águas (se é que o termo técnico é esse). Quando fui apresentado a Lulu, sujeito muito tímido mas muito agradável. A empatia foi imediata. Coincidentemente, a mim também me chamavam de Lulu, na escola. E, no trabalho, de Lula. Pois bem. Lulu, depois que da separação, entrou numa espécie de melancolia. Enclausurou-se. E, coisa inusitada, começou a beber. Sua ex-mulher, que depois conheci, vez por outra ia lá, conversava comigo, estragava o dia dele e partia. Mas isso é outro capítulo. O certo é que Lulu me disse: “Lula, você vai ocupar o quarto que fica para o jardim. Não repare. Esse quarto, quando o desenhei, era para minha filha. Os papéis de parede e todas essas frescuras você mantém se achar conveniente. Seus livros, se quiser, pode colocar no escritório. Eu quase não uso.” Na época, estava viciado nos escritores portugueses e lia a obra do Antero de Quental. “Coração Liberto” e outras mumunhas mais. Peguei minha mala, abri o guarda-roupa embutido, instalei lá meus anexos, e fui ler no jardim, ouvindo o silencioso e inaudível correr das águas do Rio Corrente. Naquela noite primeira, fui dormir com uma sensação estranha, mas ao mesmo tempo agradavelmente confortável. Ao amanhecer, ao abrir as janelas, a luz do sol penetrou pelo quarto. Era muito cedo, e gotas de orvalho ainda brilhavam nas rosas e nas gramas do jardim. Imediatamente pensei em Minéia. Tenho minhas razões para isso. O sol, naquela manhã, me dava boas-vindas. Pareceu-me estar nascendo novamente. Pareceu-me que a vida que eu levava tinha sido definitivamente colocada num baú. Pareceu-me que a paz que eu nunca tive, se apoderara de mim, e tinha o sol como seu mensageiro, luminoso mensageiro. Levantei-me e....

26 de fevereiro de 2007

Filosofia Anônima

... acordo de madrugada e caminho cambaleante até o banheiro sentindo dores pelo corpo e uma dificuldade qualquer ao andar que não sentia antes e uma demora em alcançar o banheiro e esta sensação que me invade devagarinho com o passar dos anos vai penetrando tão quase imperceptivelmente em meu corpo que é quase que um "surpreender" a velhice trabalhando em surdina o que me acontece nesta madrugada... mas que equipamento dos infernos este que o imponderável usa pra me enferrujar tão surdamente...

Deusa de Assombrosas Tetas

Para Máximus Mansur


Neste domingo, pós carnaval, às cinco e meia da manhã, o sol ainda não havia
nascido, desci até a garagem. Peguei os CDs da Patrícia Costa. Saí rumo à
Rodoviária de Salvador. Thereza chegaria, pelas previsões, ali pelas seis da
manhã. Engano, chegou às sete e trinta. Eu tenho muito que fazer no trabalho e
muito que ler na faculdade, mas achei pertinente, e oportuno, esquecer tudo que
tinha de obrigações e dedicar o domingo a ela. Foi o que fiz. Agora, são 20:30 e
preciso contar nossa turnê.

Foram três paradas. Antes, porém, um comentário um tanto quanto “piegas”. Quando voltávamos da Rodoviária e antes da turnê abaixo, dirigindo pela Orla, senti uma espécie de satisfação. A cidade voltara ao normal. Acabara o carnaval e o domingo era meu novamente. Poucos dias antes, durante o carnaval, abateu-me (eis aqui a pieguice) certo sentimento de... ciúme. Gente do mundo inteiro na minha segunda cidade, usando-a e abusando-a. Sei lá. É como se ela se prostituísse, se vendesse. Vamos ao que interessa.

Primeira parada: Praia do Jardim de Alá, uma das mais bonitas da Orla de Salvador. Estacionei. Havia uma banda tocando coisas do carnaval. Muitos e muitos turistas ainda estão na cidade, de modo que os artistas baianos, mesmo terminado o carnaval, ainda fazem suas cantorias pelas praias e pelos bares. Pois bem. A cantora, assim que pusemos os pés na areia da praia, diz: “quero convidar aqui para o palco um homem para dançar comigo”. Era uma dessas loiras falantes, com vestido minúsculo (que me deixam ruborizado) e um vozeirão a la Ivete Sangalo. Quando vi que nenhum homem se predispunha a contribuir para a festa, fiz menção de subir, no que fui apoiado por Thereza. Tirei a carteira. Dei para Thereza. Tirei as chaves do bolso. Dei pra Thereza. Tirei o relógio. Dei pra Thereza. Estalei os dedos. Estava pronto. Mas a cantora, impaciente, descera do palco, atravessara a areia quente e capturara um maranhensse tímido que lá estava. Fiquei desapontado. Eu, tímido, mas espalhafatoso (como diria Caetano), queria mais era agradar Thereza (tipo para tornar pitoresco o domingo de sua chegada a Salvador. Frescura, como podeis perceber). Despontados, sentamo-nos numa mesinha da praia e pedimos água de coco. Tomamos e ficamos vendo o maranhensse, que não sabia dançar, dançando. Tomada a água de côco, partimos, tímida e espalhafatosamente, para outra praia..

Segunda parada. Na outra praia, outro músico, sozinho, cantava. Thereza gostou. Sentamos e fomos ouvir. Sabe aqueles sujeitos que malham, mas que o fruto do esforço só se verifica da cintura para cima? Era o caso do bendito. Braços enormes e pernas minúsculas, e finas. Parece elefantíase. A voz rouca era resultado dos esforços no carnaval. Na orelha, um brinco maior e mais pesado que os grilhões usados por meus antepassados. Pedais espalhados pelo chão e uma pasta com letras de músicas. Ficamos por ali, ouvimos algumas músicas e saímos. Somos muito volúveis pelo visto. Levantamo-nos, seguidos pelo garçom que insistia em que eu tomasse a bendita da Schin gelada. Não tomei, embora o calor da praia fosse argumento suficiente para três delas. Pegamos o carro e fomos para o Pelourinho.

Terceira parada. Pelourinho. Já eram 14 horas e Thereza tinha fome. Fomos almoçar no Restaurante Terra Brazilis. No som do restaurante, Caetano. “Sou tímido e espalhafatoso, torre traçada por Gaudi. São Paulo é como o mundo todo. No mundo, um grande amor perdi. Caretas de Paris e New York, sem mágoas, estamos aí... Deusa de assombrosas tetas!”

Tudo bem, chega de Caetano. Enquanto comíamos a feijoada, falávamos sobre homossexualismo. O que eu disse para ela, digo para vocês também. Nutro uma simpatia muito grande por eles (embora suponha que a recíproca não seja verdadeira). Eles fundem em si as qualidades que os homens deviam ter, mas não têm, por machismo ou por idiotice, e as qualidades que muitas mulheres têm, mas que, neles, ganham contornos de profissionalismo. Fui claro? Não, eu sei.

Aliás (só um parêntesis, volto ao tema central em 10 linhas), temos uma frustração na família. Todos imaginamos, inclusive paínho, que Fábio, o caçula, apresentava alguns sintomas que denunciavam a presença de um fato novo. Quando Fabinho nasceu, Márcia e Marlúcia já eram grandinhas. E, diferentemente de nós outros, o infame nascera com cabelos cacheados e cor da pele que estava mais para paínho (de origem portuguesa) que para maínha (afro-descendente). Virara atração o bendito. Nesse contexto, todas as mulheres da rua adotaram a criança e o mimoseavam em demasia. Por essa época, eu e Petrônio estávamos já com nossos 7, 8 anos, e trabalhávamos feito gente grande. Só quem não trabalhava mesmo eram Paulinho, Maurício e Fábio. Ide perguntar aos mesmos e eles vos hão de confirmar. Pois a rua inteira começou a comentar, à boca pequena, que o filho caçula de Dona Jovita... Bem, depois eu falo sobre isso. O certo é que Fábio contrariou nossas expectativas. Lamentavelmente. Seria legal ter um irmão que fundisse as qualidades que citei acima.

Voltemos ao Pelourinho. Terminada a feijoada, subimos rumo ao Largo Tereza Batista, muito propositadamente. Depois, quando íamos em direção à rua João de Deus, ouvi um contrabaixo retumbante numa toada que, sem sombra de dúvidas, era um blues. Não me contive: “Thereza, vamos lá?!” A rua estreita estava cheia de turistas e de citadinos. Na calçada, no palco improvisado (no Pelourinho, essa tarde se improvisa, hehe), uma bateria e o baterista; um baixo e o baixista; uma guitarra e o guitarrista, que era também o vocalista. Amigos, eu já andei muito nesse mundo (e também fora dele, com Alfredo), já ouvi de tudo, mas os caras deram um show como nunca ouvi. O cantor era um rapaz de cabelo rastafari bem magricelo mas com uma voz maravilhosa. Tocava como ninguém. Na calçada, próximos à mesa em que ficamos, turistas dançavam, no que eu, que estava desapontado com a não dança na praia, juntei-me aos tais. Thereza olhava-me como quem diz, no íntimo: “é absolutamente necessário ficar rebolando?” Li seus pensamentos mas continuei com os turistas. Enfim, foi um show. Antes de irmos embora, a banda tocou, muito apropriadamente, “País Tropical”, do Jorge Ben Jor: “Sou flamengo e tenho uma nega chamada Tereza... em fevereiro, FEVEREIRO, tem carnaval, tem CARNAVAL!” Show igual, só no Tom Shoppin (a Casa de Shows fica numa das transversais da Av. Miguel Sutil – vide Respirando Ameaças -, onde você vai ouvir uma negra cantando maravilhosamente, enquanto toma uma pinacolada).

Mas não ficou por ai. Pedi ao dono do bar telefone do cantor. Ele me passou o telefone (071-9169-3880) e o site. www.marcionilio.com.br. Achei bem pouco artístico o nome do sujeito, mas respeitei. Queria mandar para ele um e-mail perguntando onde ele se apresenta e manter contatos. Entrei no site. Qual não foi minha surpresa? Abram o site e vão entender. O sujeito é o cara. Mas, cantor igual, só um: Máximus Mansur. Site? Não tem. Endereço? Não sei. Banda? Não tem. Notoriedade? Ínfima. Dinheiro? Nem pensar. CD? Não tem. Mas todo aquele que ouvi-lo cantar dirá: "mais, toca mais!". Pois bem, fomos embora. Não pude ficar mais na rua. Minha cabeça estava e está muito preocupada em não perder a entrega do Oscar, que está começando, por sinal. Thereza dorme. Reli o texto e observei: que ele é uma celeuma sem pé e sem cabeça, que há cinco temas intercalados sem qualquer lógica, e que eu devia não publicá-lo. Depois eu decido. Está começando o Oscar e o requeijão que Thereza trouxe, e que comi, já me faz pensar em Judas, e no seu tardio arrependimento.

24 de fevereiro de 2007

"... E o Vento Levou"

Para Petrônio

Lá em casa, Supercine e Tela Quente eram programas sagrados. Segunda e sábado, naquele frio que sempre caracterizou Vitória da Conquista, minha cidade, sentávamos, nós oito, num único sofá, cobertos por cobertores de retalhes que mainha fabricava e, silenciosos, assistíamos os filmes. Todos com meias e pijama de bolinha. Lá do quarto, paínho e maínha, que muito cedo iam para cama, autorizavam que varássemos a noite vendo filmes. Mas pediam silêncio. Quem fizesse barulho, era repreendido pelos demais sete. Se os barulhentos fossem Maurício, Fábio ou Minéia, a repreensão vinha acompanhada de um tabefe, já que eram menores. Paulinho, embora fosse o mais velho, por algum motivo misterioso, nunca usou da condição de primogênito para impor autoridade. Nosso clã era meio que acéfalo, embora nós seis voluntariamente nos predispuséssemos – por algum impulso genético – a obedecer a ele e a Marlúcia. Das três, uma: ou ele precocemente adotava um regime democrático, ou éramos por demais civilizadamente dóceis ou ele era besta mesmo e não aproveitou a ocasião para imperar como Idi Amim Dada. Estou aprofundando uma análise sociológica sobre o tema. Tão logo esteja pronto, divulgo. Pois bem. Nossa TV de 20 polegadas, instalada ali na estante – altar-mor e santuário perpétuo - era um convite à contrição e ao silêncio reverente. Nos intervalos dos filmes, íamos comer pão e vitamina de abacate (A Cine Ceia), dois produtos que abundavam em casa. Um, porque meu pai era Padeiro, outro, porque tínhamos cinco pés de abacate no quintal (vide Abacate). Tão logo ouvíamos o plin plin, corríamos para o sofá. A guerra era ficar no meio, aquecidos. Quem ficava nas pontas tinha 50% de perda no que toca ao aquecimento natural. Claro que estar no meio tinha lá alguns inconvenientes se se considerar que Petrônio tinha uma especialidade biológica que não ouso dizer aqui, mas que causava certo mal estar, principalmente àqueles mais adjacentes. O referido mal-estar, se previamente anunciado, podia causar menos prejuízo, mas Petrônio nunca profetizava. Fazer o quê?. O certo é que a concentração era essencial. Todos tinham que estar atentos a cada movimento. E todos tinham que ficar atentos aos detalhes para não ficar perguntando isso ou aquilo. Claro que Fábio e Maurício e Minéia não entendiam tudo, afinal eram menos informados e menos inteligentes que nós, “os mais velhos”. Havia, e há, certa cumplicidade e, mesmo, certa solidariedade nisso. Se alguém demorava a vir, gritávamos: “Já começou, vem logo!”. Juntos, assistimos à maioria dos clássicos do cinema. “... E o vento levou”. Cerca de três horas! Imaginem vocês!. “Doutor Jivago”, “A Noviça Rebelde”; “Os Embalos de Sábado à Noite”, “Nos Tempos da Brilhantina”, “Bem Hur”, “Moisés”, “Um Estranho no Ninho”, “Kramer versus Kramer”, "Planeta dos Macacos", etc, etc. Tempos atrás, quando morávamos em Brasília e já éramos grandinhos, ia passar um filmaço no sábado à noite. Todos os preparativos foram feitos para que os que ali estavam se organizassem. Havia um desfalque, já que Paulinho casara-se com Valci – prometo falar disso em outra ocasião – e Marlúcia casara-se com Nilton Santana – prometo idem. Agora, restavam: Fábio, Maurício, Minéia, eu, Petrônio e Márcia. Petrônio, com o tempo, evoluíra muito na sua especialidade. Fábio, Maurício e Minéia já tinham maior compreensão das coisas. Ocorre que Fábio, pouco antes de começar o filme, vai para o banheiro com o Volume II dos Ensaios do Montagne (publicados em três volumes pela Editora da UNB), contrariando a Liturgia de Leitura no Banheiro (vide Exortações Sanitárias). E lá ficara até que o filme começou. Preocupado com um possível atraso (e de ter que contar o início do filme ao retardatário do Fábio), gritei: "Fábio, já tá começaaaaaando!". Ele, de lá, remete a pérola: “Daqui dá pra ouvir, depois vocês me contam as imagens”.

21 de fevereiro de 2007

Respirando Ameaças

Para Allan (sucursal Bolívia)

Quando Saulo de Tarso ia pelo caminho de Damasco, “um resplendor de luz do céu o fez cegar.” E uma voz, vinda do céu, indagou: “Saulo, Saulo, porque me persegues? Duro é para ti recalcitrar contra os aguilhões”. Era Jesus. Daí em diante, como todos sabem, duas mudanças decisivas aconteceram. Uma, Saulo tornou-se defensor dos seguidores do Nazareno, transformando-se no principal nome do pensamento cristão. Outra, mudou de nome. Deixou de ser chamado de Saulo para ser Paulo, que quer dizer: pequeno, humilde. O fato está descrito com mais detalhes lá em Atos dos Apóstolos, 9. Fatos miraculosos como este permeiam a Bíblia. Alguns mais ou menos conhecidos. A conversão de Paulo (ou Saulo) é talvez o mais conhecido, ou pelo menos o mais importante, se considerarmos que, na ausência de Paulo, o florescimento do Cristianismo seria, por assim dizer, pífio. Um detalhe interessante, que remete a uma licença poética sacra, está logo no primeiro versículo: “E Saulo, respirando ainda ameaças, e mortes contra os discípulos do Senhor...”. “Respirando ameaças...”. Sempre achei rica tal imagem. Outra construção muito erudita: “Duro é para ti recalcitrar contra os aguilhões!”. Claro que essas construções estão presentes na tradução do João Ferreira de Almeida. Outras traduções trarão outras formas de expressão. Pois em verdade, em verdade vos digo: eu e Paulo temos três coisas em comum. Também fiquei cego por conta de um resplendor de luz, também mudei de nome, também mudei o rumo de minha vida. Há, é evidente, algumas diferenças entre nossas histórias, mas que ambos fomos abatidos por algo miraculoso, isso fomos. Eis o fato. Eu, Cláudio, estava no Caminho do Cedros – restaurante árabe de Cuiabá – quando, ao meu lado, no banco de passageiro, uma luz resplandecente com forma humana disse-me: “Encoste o carro”. Não, não era nenhum guarda de trânsito fantasmagórico. Encostei o carro. Eram exatamente 23:27 horas. Eu estava trêmulo, e não conseguia fugir, embora pudesse. A luz, por um passe de mágica, abriu o teto do carro e, por ele, me transportou para fora do veículo, colocando-me sobre um cavalo alado alvo como os lençóis do Hotel Tropical (Juazeiro-BA). Montando no cavalo, eis que sobrevoei toda a cidade de Cuiabá, afastando-me gradativamente da terra. Agarrei-me às crinas do Cavalo, cujo nome era Alfredo, e continuei afastando-me da terra que, em alguns minutos, tinha as dimensões de uma bola de futebol. Alfredo não tinha pressa. Suas asas batiam vagarosa, suave e levemente. Mas, não sei como, íamos numa velocidade estonteante. Em segundos, astros de todas as espécies e luminosidades iam ficando para trás. Formações celestiais eram atravessadas em milésimos de segundo. Até que chegamos num ponto do universo onde um astro gigantesco ocupava toda uma região. Sei que era colossal, mas não há medida com que possa explicar seu tamanho. Sei dizer que todos os astros gigantes pelos quais passamos eram poeira cósmica próximos a este colosso. Assombro. Medo. Alfredo parara e planava, como que para permitir-me contemplar o colosso. Foi quando olhei para trás e vi meus livros no banco traseiro do carro. Voltando-me, estava novamente no meu carro. Olhei para o relógio: 23:28. A viagem durara menos de 60 segundos. Desaparecera Alfredo. Voltei à terra. Se é que dela saí. Não fui para o Cedros. Embora minha fome pedisse uma esfirra de frango. Estava ainda sob o efeito da impressionante, inesquecível, inacreditável viagem. Na transversal, Avenida Miguel Sutil, há um supermercado 24 horas. Entrei e fui à cata de um tablete de chocolate meio amargo da Nestlé. Voltei para casa. Duas coisas aconteceram comigo após esse ocorrido. Uma, mudei de nome. Passei a chamar-me Krháudyo. A outra, só a história poderá revelar.

12 de fevereiro de 2007

Ligeiramente Apertado

Para Cinthya (data venia)

Não tenho pudores para falar de minhas deficiências. Falo mesmo. Falo. Exponho minha nudez. E declaro: eu não sei arrumar uma casa. Faço uma coisa e outra. Lavo, passo, etc, mas gerenciar a arrumação total de uma casa é tarefa que exige todo um conjunto de habilidades e conhecimentos de que não disponho. Tudo se aprende, eu sei. Quem sabe, agora que me fixo definitivamente em Salvador, e que passo a ter um endereço, dê início aos exercícios necessários ao aprendizado. Ainda bem que posso culpar meus pais por não me terem permitido, junto com Marlúcia e Márcia, atuar nas coisas do lar. Painho não nos permitia, a nós homens da casa, perambular pela cozinha: “Cozinha não é lugar de homem”. Eis a raiz de minha incompetência. Imaginem vocês que, no Convento onde eu estudava, cheguei a dar aulas de artes manuais, inclusive tecelagem. Foi o suficiente para um conflito Paínho X Jacira (professora de arte). Meu pai, quando soube que eu estava ensinando tecelagem para meus colegas, foi pessoalmente à diretoria do Convento e, para meu constrangimento, disse que “filho dele não faz coisa de mulher”. Jacira, na primeira aula de artes após a intervenção de paínho, chega para a turma e diz, para minha vergonha: “Meninos, a partir de hoje, ninguém mais peça ajuda nem aula para o Luiz; de nada, ouviram? O pai dele esteve aqui e...”. Não podendo ficar vermelho, fiquei branco. Em Casa: “Poxa, paínho, precisava o senhor ir lá?”. “Tá me chamando a atenção, Cradinho? Desaforado!”. Murchei. Mas, por dentro, reprovava tal procedimento paterno. Hoje, qualquer criança (garota, claro) faz tudo numa casa. Cinthya, por exemplo, quando tinha seus 8, 9 anos, era craque em qualquer matéria de casa. Sua mãe, que era hábil como a peste em tudo, inclusive em questões do gênero, dera-lhe instruções precisas sobre a labuta diária numa casa, e a fizera exercitar tais conhecimentos. Lembro-me que, certa vez, fui escalado para lavar os pratos na casa de Cinthya. Lá fui eu, com ar de especialista, tomar conta da pia. Além de copos e pratos, havia outras panelas e utensílios que, para minha preocupação, davam certa complexidade à tarefa. Fossem somente pratos e copos e panelas, vá lá, mas havia outros elementos nocivos à minha pobre alma. Oh!. Dez vezes Oh!. Cinthya, percebendo claramente que um amador iria se postar nas adjacências da pia (e curiosa como sempre foi), ficou a observar, com aquele olho de quem tem certeza de que um adulto estava prestes a ser repreendido em nome de Santa Higiene. E, claro, não resistiu. “Tá errado”. Eu já esperava a intervenção repreendedora e superior e implacável e imperativa. “É assim: tudo que for sendo lavado primeiro tira o sabão primeiro, Tio.” Ou seja, tudo aquilo que ia sendo ensaboado e colocado de lado deveria ser desensaboado por ordem de ensaboamento, conforme o Manual do Ensaboador Moderno (ed. Casa Limpa, 1994). Inicialmente, ela só fez a observação, mas, não sei se por piedade ou se por impaciência, resolvera assumir a atividade, afastando-me, nada discretamente, para um canto. Fiquei em pé, observando. Ela, meio que ignorando minha presença (ou ignorando inteiramente), começa a cantar em voz alta, acompanhando o som que vinha da sala. Era uma das músicas do CD que lhe presenteara: “Olha o que o amor me faz” (As Quatro Estações, de Sandy e Júnior), cuja letra não era exatamente o que poderia acontecer com aquela garota de 8 anos, mas ela cantava com tal emoção e comoção e exaltação, que qualquer um diria que a letra fora feita pra ela. Eis a letra, na íntegra: “Meu coração bate ligeiramente apertado/ligeiramente machucado/caiu tão fundo nesta emoção/Primeira vez que o amor bateu de frente comigo/Antes, era só um amigo/ Agora, mudou tudo de vez/Será que você sente tudo que eu sinto por você?/Será que é amor? Ta tão difícil de esconder/Oh, Oh, olha o que o amor te faz/Te deixa sem saber como agir/Oh, oh, quando ele te pegar/Não tem pra onde você fugir/Oh, oh, olha o que o amor me faz/Fiquei tão boba, fiquei assim/Oh, oh, nada será capaz de apagar esse amor em mim!!!”. Ela cantava numa altura bem alta. Aliás, toda mulher que arruma sua casa canta mais alto que o próprio som das caixas. Nesse ínterim, eu já não mais existia. Reuni os cacos do meu orgulho, e fui para a sala, em busca de alguma coisa legível. Involuntariamente, cantarolava baixinho: “Ligeiramente apertado... lá, lá, lá”.

5 de fevereiro de 2007

O Cabo das Tormentas

Foi Celeste quem me conduziu àquele naufrágio emocional – e físico. Conto como se deu. Quando meu amigo Tito Lívio me convidou para passar uma semana na Península de Maraú, no extremo-sul da Bahia, eu já havia chegado a outro extremo: o de querer fugir de minha própria casa. Celeste era um espetáculo de mulher. Bonita, bem informada, um arsenal ambulante de regras de etiqueta. Mas sofria horrores, de si para si, por não ter concluído o segundo grau – e (cá entre nós) acho que o primeiro ela também não concluíra. Acho. Mas isso é irrelevante. Celeste chegou em minha casa por solicitação de minha tia, que me assegurara, mãos erguidas aos céus (para obtenção da cumplicidade divina), tratar-se de moça de boa índole e que, por razões de saúde, deveria fazer caminhadas diárias na areia da praia, para ajustar a curvatura inferior dos pés. Dizia minha tia: Meu filho, você vive viajando. Não pára em casa. Deixa ela ficar em seu apartamento, só por uns dois meses... Só hoje, que olho para retrovisor de minha vida, posso ver que, por trás daquele pedido, havia um ardil para que o Sobrinho Viajador, afinal, se casasse. Era o que queria minha tia. Era o que queria minha mãe. Era o que queria Celeste. Mas, definitivamente, não era o que eu queria. Muito menos com Celeste, é bom que se diga. Celeste, aquele espetáculo de mulher, que, sem que eu pedisse, tratava com esmero megalomaníaco minha casa, que enfileirava meus livros com régua, que reagia militarmente a qualquer presença de pó nós móveis, que – vejam vocês a que ponto se chega – olhava com um esgar de repugnância quando, porventura, eu saía com uma calça jeans com a barra desfiada, que, suposta esposa amada e dedicada, aguardava-me para o jantar, que, definitivamente, tomara posse. Lá pela quinta semana de convivência (período em que, coincidentemente, não viajei), por mais casto, puro, respeitador, honesto e probo que tivesse me comportado durante aqueles dias de matrimônio compulsório, ei-la que, vendo-me deitado em minha cama, lendo, faz a clássica pergunta: Você se importa se eu me sentar na sua cama? Pensei em fazer-me de desentendido, fingir ser eunuco, tratá-la como irmã (ou prima), ler para ela trechos do livro que tinha à mão, enfim, dar uma de joão-sem-braço. Mas, seja por minha iniciativa, seja pela dela, eu estava diante do inevitável. E cedi. Cedi durante cerca de oito meses. Durante oito meses, sem amar (porque eu não a amava), fui amado por Celeste, e fui tratado como seu (no que há de mais possessivo nesse pronome). Amando-me, ela deixou vir à tona todos os esperados comportamentos de esposas possessivas (ainda que compulsórias): ciúmes, controle sobre a vítima, controle sobre o que a vítima come, veste, lê, pensa, faz, não faz, desfaz, refaz. E, para meu espanto, houve um declínio algo preocupante no requinte com que se punha à mesa. Como fora enfermeira em outras eras, brindava-me, no almoço ou no jantar, com a narração realista, pungente e cruel do histórico hospitalar de todos os pacientes a que assistira. Invariavelmente, tais narrativas iniciavam-se tão logo erguia a primeira porção de comida à fome. E lá vinha ela: Quando eu estava no quinto mês de estágio no Hospital Roberto Santos, fui cuidar de dona Eulália, que tinha... Desse tinha em diante, por cerca de uma hora, ela me trazia para a mesa a visão clarividente de dona Eulália, cardíaca, de seu Jérson, Relojoeiro, de seu Paulo, aposentado, de Virgínia, a acidentada, de Magno, sifilítico, de Vicente, cobrador de ônibus; enfim: o elenco era maior que o número de figurantes d´A Paixão de Cristo, e suas enfermidades nem mesmo Almodóvar poderia vislumbrar sem um quê de pia compaixão. Esses e outros atributos (dos quais vos poupo) davam ao conjunto da obra uma moldura trágica. E eu precisava fugir, antes que completasse nove meses de relacionamento. E fugir antes que, valha-me Deus!, um rebento, o sangue do meu sangue, viesse compor a tríade surrealista. Foi nessa época que meu amigo Tito Lívio, de férias, iria passar uns dias num paraíso no sul de minha terra. Luiz, dizia-me Tito, vamos eu, a Ísis, minha sogra e a família de minha cunhada passar uns dias a ver o vento despentear os cabelos dos coqueiros. Venha você e sua... namorada... Fui. Sem Celeste. Criei todas as condições necessárias para que ela não fosse. Mas ao fim, cinicamente: Oh!, Celeste, sinto tanto que você não possa ir. Você sabe o quanto me é cara a sua presença! E emiti mais uns três ou quatro “Oh!”. Para quem não conhece, a Península de Maraú é um paraíso. E, por isso mesmo, chegar lá é uma via crucis: Deixa-se o carro na cidade de Camamu, pega-se um barco que, em uma hora e meia, nos deixa em Maraú. Dali, pega-se uma jardineira até o extremo leste da península. Lá, diante do mar, algumas pousadas aglomeradas formam a única visão da presença de civilização no local. Pronto. No mais, ler, contemplar as ondas, mergulhar, comer peixe, meditar, tocar violão, observar os cardumes coloridos, e, à noite, o luar. Passados alguns dias e algumas noites, aquela rotina de paz – um breve intervalo em minha rotina de infernal claudicância –, se, de uma lado, era um alento, de outro, provocara uma espécie de estupor em mim, abrupta que fora a fuga e drástica que estava sendo a mudança de ares. - Tito, vou embora. - Homem de Deus! - Tenho compromissos inadiáveis. - Mas homem de Deus! Naquele fim de tarde, depois de muitas partidas de frescobol, Tito, ainda incrédulo de minha... partida, explicou-me: Luiz, o barco sai de Maraú, às 07:00 da manhã, para Camamu. Não haverá jardineira que posso levá-lo até lá. Logo, você terá de levantar-se às 04:00 (03:00, considerando o horário de verão), caminhar pela praia até o extremo norte da península e, lá, pegar o barco. Considerando que sua mochila pesa 5 quilos, a caminhada na areia da praia, por três horas, fa-la-á pesar 30. Mas como seu compromisso é... inadiável... Naquela noite, jantamos e jogamos conversa fora. Levantei-me no horário previsto, despertado pelo Tito. Peguei a mochila, despedi-me dele e da Ísis, e saí porta fora. Qual não foi minha grata e poética surpresa?! À minha frente, uma constelação contracenava com a lua cheia, sobre o mar, que mugia alto no silêncio ensurdecedor daquela madrugada. Parei por um instante e lamentei estar sozinho e não ter com quem compartilhar aquele outro espetáculo. Caminhei alguns metros tendo, à minha esquerda, a relva e os coqueiros – visíveis somente pela luz tênue da lua –, e, à minha direita, o mar –, visível apenas pelas espumas das ondas da maré alta e pelos íris da luz nas ondas. E, no horizonte, como quem olha uma bola de futebol no campo, a lua. Depois de andar por três minutos, a luz da pousada já estava distante, e, daí em diante, só nas proximidades de Maraú é que encontraria alma vivente. Depois de 10 minutos, minha imaginação começou a transformar o espetáculo poético no mais amedrontador dos filmes. Primeiro que o barulho do mar fazia-me crer que, a qualquer momento, um monstro gigante viria à tona e me engoliria, conduzindo-me, como a Jonas, para as profundezas do mar. Segundo que a lua, outrora bilaquiana, tornara-se um astro de dimensões colossais, um Olho Gigantesco do Universo que me acompanhava. Terceiro que, à minha esquerda, a selva poderia produzir (assim eu imaginava) uma alimária perversa, com presas de mamute, que me faria correr em desespero para o mar, onde encontraria o Monstro das Profundezas do Mar. Depois de 20 minutos, já estava assombrado comigo mesmo. Eu, minúsculo ser, sob a mira do Olho Gigantesco do Universo, oprimido pelo mar sem fim, pela selva selvagem, e pelo barulho do mar. Decidi que deveria voltar à pousada já que faltavam duas horas e meia de caminhada. Mas, brioso, mudei de idéia e dei continuidade à tortuosa, amedrontadora caminhada. Ali pelas 6 horas – quando todos os pensamentos malévolos já tinham feito pousada em minha cabeça, quando todos os arrepios já me tinham acometido, quando a profecia do Tito Lívio relativa ao peso de minha mochila se cumpria, quando o Olho Gigantesco do Universo já ia mais alto (e me oprimia) –, olho para trás, por sobre o ombro esquerdo, e pude ter o vislumbre – só o vislumbre – de algo que se movia no mesmo rumo que eu, mas que, pelo escuridão que nos circundava, impossível distinguir se era a Alimária Com Presas de Mamute, se o Monstro das Profundezas do Mar, se um Emissário das Trevas Profundas ou se, tão somente, uma criação de minha mente assustada, terrivelmente assustada. Pensei em jogar a mochila e sair correndo. Mas, pensei melhor, se for o que estou pensando, correr será em vão. Mudei de idéia. Brioso, disse: Boa noite!. Mas disse-o com timbre de voz alto (e trêmulo), iludido pela idéia de que poderia assombrar a assombração. Não houve resposta. Mais à frente, quando eu já me preparava para desmaiar, a assombração disse: A maré está alta! Deus. Quase que grito por minha mãe, por Deus, por Jesus. Não desejo nem a Osama Bin Ladem tamanho sofrimento. A maré está alta! Era isso que retumbava em meu ouvido. Acalmei-me quando veio a pergunta: Tá indo pra Maraú?. - Tô – monossilabicamente trêmulo. - Também. Mora aqui? - Não – monossilabicamente trêmulo. - Vai pegar o barco pra Camamu? - – monossilabicamente trêmulo. - A maré tá alta, né?! - – monossilabicamente trêmulo. Para minha alegria, à minha direita, as nuvens no horizonte foram parcialmente iluminadas pelos raios do sol, que ainda não despontara. Só isso, só essa certeza de que o sol estava vindo, deu-me alento suficiente para enfrentar a assombração que, diga-se de passagem, era bem cordial. Tomei coragem e perguntei de onde era. Ele (ou ela) disse-me que os pais tinham terras na região e que estava indo para Itabuna. Quando o sol tomou o lugar da lua, pude ver o rosto da assombração. Era um rapaz de uns trinta anos, com uma mochila – maior que a minha – às costas. Por orientação dele, pegamos um atalho por entre os coqueiros, por onde chegaríamos mais rápido às embarcações. Às 06:55 estávamos sentados no barco, com mais algumas pessoas. Ele então olhou para mim e fez: - Qual seu nome? - Luiz Cláudio. - Posso lhe dizer uma coisa, Luiz?. - Sim. - Eu nunca, nesses meus trinta anos, senti tanto medo na minha vida. Quando você disse “boa noite!” daquele jeito, eu quase saio correndo. Por que você deu aquele grito tão... sei lá?. Ele não precisava saber do que se passava comigo. E minha vaidade falou mais alto. Chegamos em Camamu. Peguei um ônibus para Salvador e cheguei em casa. Joguei a mochila de 30 quilos no chão. Retirei os sapatos e fui ligar o som, quando percebi que haviam cortado o fornecimento de energia durante minha viagem. Previ que, naquela noite, iria enfrentar nova escuridão, o Olho Enciumado do Universo, o Monstro das Profundezas da Alma, o Fantasmas do Espírito dos Vivos, e aguardar, impaciente e trêmulo, pela aurora.

4 de fevereiro de 2007

Se Houver Amanhã

Lá em casa, há quem diga que eu nasci com a bunda pra lua. Nunca vi muita razão nisso, mas ontem pude comprovar isso claramente. Antes, contudo, preciso fazer um comentário sobre coincidências (ou sincronia, se vos apetece). Quando eu era muito garoto, e estudava música, deparei-me, num dos conceitos de harmonia, com a palavra “simultâneo”. Achei linda a palavra. Simultâneo. O texto era: “Harmonia é a execução de várias notas simultaneamente”. Exemplo: o piano. No piano, a gente executa várias notas ao mesmo tempo. O violão também é um instrumento harmônico. Já o saxofone e o clarinete e a flauta são instrumentos melódicos, já que suas notas são executadas uma após a outra. Ou seja, a harmonia está para a poligamia, assim como a melodia está para a monogamia. Mas isso não vem ao caso. O certo é que, de uma hora pra outra, a palavra simultâneo começou a surgir em tudo quanto é lugar. No colégio, na TV, nos livros, simultaneamente. Pois bem, voltemos às comprovações de que, realmente, nasci com a bunda pra lua e de que existe uma sincronia maluca nas coisas todas. Ontem, como todos sabem, foram comemorados, em Salvador, os festejos de Yemanjá. Um vucu-vucu sem fim em toda a orla. Eu, que não sou dado a festas e vivo no recôndito do meu lar, na clausura do meu eu, na intimidade de minha individualidade, no aconchego do meu claudianismo, na penumbra de minha clausura, fui para uma praia menos movimentada. Longe, muito longe do Rio Vermelho. Perto, muito perto de Piatã. Dispo-me sem vergonha, já que perdi boa parcela da gordura que obtive nos últimos dois anos. Sento-me na areia da praia para, antes de entrar na água, meditar sobre as razões da existência. Aliás, faz uns trinta anos que dedico de cinco a dez minutos a meditar sobre as razões da existência. Em vão, naturalmente. Mas, que são cinco ou dez minutos para quem tem bem mais de mil minutos por dia? Vocês implicam com tudo, hein? Deixa eu meditar, ora essa! Quando já estava ali pelos dois minutos de meditação, meu olho esquerdo, seguido do direito, percebeu, deitada na areia, uma garota que, salvo melhor visão, era a coisa mais linda que o Criador, com toda a sua habilidade estética, criara no mundo. Negra. Era uma garota negra e tomava banho de sol sobre uma canga verde musgo. Linda. A pele, ao sol, brilhava intensamente, com o auxilio luxuoso de um bronzeador. E, mais intensamente, brilhava um piercing no seu, oh!, seu lindo afro-umbigo. Deixo por vossa conta imaginar tudo o mais. Meu olho esquerdo, seguido do meu direito, também percebeu que ela tinha, ao seu lado, um livro. Era “Se houver Amanhã”, do Sidney Sheldon. Eis a coincidência de que falava. Um dia antes, li numa publicação que o mesmo havia morrido. Agora, ao meu lado, uma garota fenomenal estava ali, na areia da praia, lendo uma de suas obras. Que coisa, hein?! Pois é. Eis que, lembrando-me de minha recente solteirice, achei conveniente ensaiar uns passos rumo a um novo grande amor. Interrompida a reflexão acerca das razões da existência, comecei a elaborar uma estratégica de abordagem eficaz para uma aproximação. Nessas horas, é preciso todo um cuidado. Qualquer palavra fora do lugar e babau. Depois de um minuto e dezessete segundos de reflexão, cheguei à melhor forma de abordar à Deusa de Ébano. Eu e praticamente metade da humanidade já lemos Se Houver Amanhã. Que faria, pois?! Bem, ela havia marcado o livro. Um terço da história já tinha sido lido. Foi o bastante. Lembrei-me da história e deduzi em que trecho da mesma ela estava. Pronto. Fui até ela, tímido como sempre fui, e: "Olá, tudo bem?" Ela não respondeu de imediato. "Tudo". Respondeu, secamente e com um “não prévio” esboçado no semblante. Eu já previa que o bendito do olá, tudo bem não teria futuro nenhum. Mas a segunda frase não podia ser dita a queima-roupa. Ei-la: "Vi que você está lendo um livro que marcou minha infância". Sim, eu pus uma pequena, mísera dose de exagero; sim, pesei um pouco a mão; mas o livro teve lá sua importância, ora essa!. Vocês também são muito exigentes! Só que a frase era afirmativa, não necessitando de resposta, evidentemente. Fiz, então, a pergunta: "Você já chegou naquela parte assim, assim?" Pronto, foi o suficiente para ela abrir um sorriso ímpar e ultra odontológico. "Já!", disse ela, com um “sim profético” esboçado no semblante e no corpo. "Sério?!" Daí em diante eu estava em casa. Em meio aos comentários literários, entremeava perguntas dirigidas a fins muito específicos, se é que me entendem. Pois bem, depois de muita conversa: "Qual seu nome?" Perguntei. "Daphene", foi a resposta. Foi nessa hora que quase tive um troço. A última Daphene que conheci, e com quem nada tive, me causou um prejuízo tão gigantesco, tão monumental que conhecer outra ou é obra do senhor das trevas ou uma tremenda coincidência. Depois de me recompor do efeito do nome da Deusa de Ébano, e considerando que o calor estava soteropolitano, ela – e não eu, como alguns maldosos poderão supor – convidou-me a que fôssemos tomar banho de mar. A maré estava baixa, mas eu estava em alta. Tudo o que aconteceu depois esteve recheado de muitas coincidências mas, principalmente, de muita, muita sincronia e muita, muita simultaneidade, se é que me entendem. Isso me faz aceitar a abundante afirmação de que, de fato, nasci com a bunda pra lua, hehe.

Benedictus

Um dos prédios mais antigos da capital baiana abriga, há séculos, o Mosteiro de São Bento. Trata-se de uma construção suntuosa. Visitando-o, temos a sensação de navegar no passado. Essa sensação está presente em nós a cada prédio visitado no Centro Histórico. Diferentemente de Roma, em Salvador os prédios não são ruínas, mas, evidentemente, são bem mais jovens: têm menos de 500 anos. Alguns metros depois do Mosteiro está a Praça Castro Alves e, claro, a estátua do poeta, com sua mão poética estendida – “toda essa mão para fazer um gesto que, de tão frágil, não se modela”. Alguns metros antes, está o prédio da Previdência Social, onde trabalho. E, nas adjacências: o Largo Dois de Julho, o Largo da Palma, A Praça da Liberdade, a Rua da Montanha, o Pelourinho, o Relógio de São Pedro, a Bahia de Todos os Santos, a Barroquinha, O Terminal da Lapa, a Rua Chile, a Avenida Sete de Setembro, e a Carlos Gomes, o Campo Grande. Quando voltei para Salvador, há alguns meses, resolvi que iria viver a cidade e viver na cidade. Desfrutando de suas praias, sua gente, sua história. Sinto-me responsável – sim, é pretensioso – por ser o elo entre o passado e o futuro da cidade. Vou agendar um encontro entre Tomé de Sousa e o próximo alienígena que me visitar. Levando um note book para o Mosteiro, digito nele os cantos beneditinos. Vou propor aos monges que usem tecido feito a partir de estudo da nanotecnologia. De posse das duas pontas do fio do tempo (passado e futuro), vou amarrar suas extremidades, envolvê-lo em minha cintura, e prender minha calça, que está caindo desde que comecei a emagrecer. Para tanto, começo amanhã o curso de filosofia do Mosteiro de São Bento. A aula magna será hoje, domingo, às 16 horas. Durante três anos, estarei estudando dentro do ambiente mais pacífico e mais monástico da cidade. Durante três anos, terei aulas com monges, ouvindo o farfalhar de seus hábitos nos corredores do mosteiro. Será engraçado, já que nenhum deles sabe que sou contemporâneo de São Francisco de Assis, que fui o revisor do texto final do relatório do Concílio de Trento, que fui eu quem aconselhou Gutemberg a usar a fonte times new roman na primeira impressão da bíblia, que Lutero era meu primo, que Calvino foi massacrado por mim em cinco partidas de xadrez. Será engraçado, já que nenhum dos monges saberá que antes, muito antes de qualquer antes, assisti, sentado numa nuvem branca, o primeiro nascer do sol, que antes, muito antes de qualquer antes, vi u´a mão gigante semeando no negro lençol da escuridão infinita uma infinidade de estrelas. Mas muito mais engraçado será quando souberem que o enredo d´O Nome da Rosa não passa de plágio que o Humberto Eco fez de um texto que eu havia escrito, de uma sentada só, em 08 de maio de 1934. Benedictus.

2 de fevereiro de 2007

Palmolive - para cabelos oleosos

Para Dora (ela sabe o motivo)

Vidas, tive muitas. Desde que tudo começou, tive mais vidas que Raul Seixas. Lamento não me lembrar, com detalhes, de tudo que se passou nestas vidas todas. Quisera ter a memória de Márcia. Márcia se lembra de tudo. Nesta vida presente, diversas vezes fiquei à beira do abismo, mas não caí. Mas, se tivesse caído, e sucumbido, não seria problema. Ouso dizer que já vivi o bastante. O que vier, será lucro. Já foi lucro suficiente vir à tona, considerando que maínha poderia, junto com paínho, ter deliberado que, tendo nascido Petrônio, bastava. Se assim fosse, uma série de pessoas, que hoje vêem seus álbuns de fotografias, não me teria presente neles. Se assim fosse, minha mãe não teria perdido tanto sono com minhas cólicas e diarréias (perdão pelo detalhe sórdido). Se assim fosse, esse blog não existiria e vocês estariam ocupados com 10 pessoas no MSN ou mandando recados no orkut. Mas assim não foi. Nasci e, querendo ou não, uma infinidade de pessoas tem nas suas agendas diversos números dos diversos aparelhos celulares que já tive. Querendo ou não, todo dia 13 de janeiro, muitos (e muitas, é bom que se diga) acordam, dizendo: “Hoje é aniversário daquele sujeito”. Querendo ou não, nos mesmos álbuns, lá estou eu, histórico, pétreo, imexível. O certo é que nasci e quase morro aos dois anos, conforme já disse nas minhas exortações sanitárias (vide post anterior). A existência, para que eu não achasse que tudo era festa do outro lado da barriga de maínha, vive me presenteando com algumas dores, para que eu não seja soberbo, para que eu não pense que tudo são glórias, para que eu agradeça. São muitas as dores desta vida. As dores de cólica são as piores. “Esse menino não pode comer comida pesada”. Todo mundo lá em casa come como se o mundo acabasse no dia seguinte. Só eu, o eterno enfermo, estava limitado às comidas leves. Qualquer excesso, e lá me vinham os infernais desarranjos. E as infernais cólicas. E as eternas visitas ao banheiro. E os amarguíssimos remédios amargos que mainha fazia e me obrigava a beber, impulsionando o copo ao som de “gut, gut, gut”, como se, simulando o barulho do remédio descendo garganta abaixo, desse-me ânimo e coragem para encarar meio copo de amargor. No armário do banheiro, um arsenal de outros xaropes, um exército de amargores. Pois bem. Numa daquelas noites de cólicas infames, acordo mainha, que me leva ao banheiro, desesperada com meus gemidos (dores de um parto impossível). Exasperada, abre o armário do banheiro, tira de lá algo que ela supunha ser um dos meus remédios. Enche uma colher e injeta na minha boca, gut. Enche outra colher, gut, gut. Enche outra, gut, gut, gut. E outra, gut, gut, gut, gut. Mas, considerando um borbulhar esquisito nos cantos de minha boca, e considerando minha cara de dor associada a um esgar de nojo, resolve ligar a luz. Percebe que o que tinha na mão era um recipiente de shampoo Palmolive. “Deus, matei meu filho! Matei meu filho!!”. Daí, houve todo um processo operacional para que eu expelisse – agora com outra sonoridade – tudo aquilo que entrara ao som de gut, gut.