27 de janeiro de 2007

Exortações Sanitárias

Para Nelson

Vou contar pra vocês uma história muito comovente e, ao mesmo tempo, muito comovedora, que vai lhes causar profunda comoção. Ocorreu comigo e envolveu a minha própria vida. É tão comovedora que acho que não vou contar. Não vou contar! Não vou contar! Não vou contar! Vou contar!!. Quando contava meus dois anos – não faz tanto tempo assim, Nelson! – fui acometido de uma inigualável infecção. Morávamos em Guanambi, na Bahia. Algo que comi promoveu um transtorno mortal no meu sistema digestivo – e em sistemas outros da vizinhança gástrica. Emagreci o suficiente para que todos aqueles que iam visitar o “Filho doente de Jovita” olhassem-me com um quê de pêsames prematuro. Entravam no quarto, viam-me na cama (pele e osso), imóvel, o olhar perdido num outro infinito, balançavam a cabeça e saíam, fúnebres. Mentalmente, entoavam: “segura na mão de Deus...”. Claro que não me lembro disso. Sei dos detalhes por conta de depoimento de terceiros. O certo é que, no hospital, o médico dissera á minha mãe que era inútil ela insistir que eu fosse internado. Desenganara-me. E, meio que na brincadeira, comentara: “Liga não, a senhora já tem quatro filhos”, deixando subentender – brincando, é evidente – que um a menos não faria tanta diferença. Mal ele terminou a frase, e seu pescoço foi envolvido pelas garras de minha mãe, ofendida até a alma com o comentário insano; foi salvo pela intervenção de painho, que nem sempre foi misericordioso nas questões de família (Leiam Deus é Amor). Feitos os pedidos de desculpas, e dadas as desculpas, meus pais voltaram para casa, tendo, nos braços, Claudinho.Oh! (eu avisei a vocês que seria comovente e, ao mesmo tempo, comovedor). Movidos pela certeza de que eu tinha salvação – e de que, fatalmente, me tornaria uma figura ilustre no cenário brasileiro – resolveram mudar para outra cidade, cujo clima era mais frio. Fizeram-no. Salvaram-me da morte. Só não me salvaram da religiosa necessidade de visitar o banheiro, por força de os mecanismos internos de que disponho para processar o que quer que seja ficaram com defeitos. De modo que, posso assegurar, um terço de minha biografia se dá dentro de sanitários. Ao longo do tempo, alcancei certa técnica em assuntos de caráter sanitários. Ler no banheiro é um deles. Não sei quando começou tal hábito, mas já o praticava na Av. Sergipe, 615. Lembro-me, nitidamente, de quando, sentado, concluí o Primo Basílio. Lá fora, usuários do mesmo sanitário gritavam impropérios por conta de minha demora. Era Márcia. “Claudinho, falta muito?” A pergunta tinha óbvio e intencional duplo sentido. Nesta época, cometia pecado que hoje não mais pratico: ler romance no banheiro. No banheiro, deve-se ler somente o seguinte: poesia (exceto Fernando Pessoa, já que alguns de seus poemas são imensos), crônicas, contos, frases, dicionários (ainda que grandes), revistas, etc. Ou seja, leia aquilo que pode ser consumido rapidamente. Deixe sempre algum livro no banheiro. Há momentos em que a urgência o impedirá de ir à estante e selecionar o que vai ler. Hoje, por exemplo, tenho no banheiro quatro obras: Eu, do Augusto do Anjos, Tempo de Contar, do Joel Silveira, Correspondências, da Elizabet Bishop e Livro do Desassossego, do Fernando Pessoa. Vez por outra, elejo outro autor para compor a biblio-wc. Tome cuidado, leituras muito instigantes em geral resultam em fracasso nos seus intentos biológicos. Não leia nunca revistas como: Ti Ti Ti, Contigo e Quem. Nunca. Mas, se já o faz, paciência. Vire-se com sua prisão de ventre. Jornais, não os leia no banheiro. No máximo, destaque o caderno de cultura ou o de Cidade. Nunca leve relatórios de trabalho. Esses você pode ler em qualquer lugar sem ser acusado de desocupado. Vá por mim. Caso você queira saber qual a causa que levam algumas pessoas a ler no banheiro, eu explico. Posso não saber muita coisa, mas isso eu sei. As razões, claro, são psicológicas e sociológicas. Exemplos: Quem lê fora do banheiro, terá a certeza de que fatalmente será interrompido. “Tá lendo o quê?” Daí em diante, babau leitura. Quem lê fora do banheiro tem a sutil sensação que poderia estar fazendo algo mais útil, e sua consciência o impede do deleite da leitura, porque, com certeza, haverá algo a fazer e, com certeza, haverá alguém pra dizer: “Tanta coisa pra fazer e ele lendo, esse verme!”. Quem lê fora do banheiro está permanentemente à procura de uma posição cômoda, e nunca acha. Enfim, poderia discorrer infinitamente sobre as causas íntimas para o hábito de ler no banheiro, mas esse não é o melhor momento nem lugar. Talvez publique um livro somente sobre o tema. Penso até em patentear a idéia de as editoras publicarem livros à prova dágua. Pensem! Ler no chuveiro! Seria a glória! Teria muito mais a exortar-vos acerca de tão importante tema, mas já são três da manhã e, nesse final de semana, vou para Itaparica. Vou dormir, portanto. Antes, porém, vou tomar banho e... Fernando Sabino (A Falta que Ela me faz - crônicas).

“Eu tô sem raiva!”

Tive uma namorada que brigou comigo pelo simples fato de eu não brigar com ela. Dizia que eu era por demais diplomático, que uma breve pitada de ira não fazia mal nenhum. “Você não se irrita?”. Claro que eu me irritava! Claro que havia uma série de coisas que me deixavam emputecido, mas, não sei se por preguiça, se por condescendência, se por alguma nata habilidade para a dissimulação, nunca consegui manifestar – externamente – sentimentos de ira ou de aborrecimento. Evidentemente que eu achava muito inoportunos certos comentários que ela fazia. Evidentemente que eu reprovava aquela mania de ajustar a calcinha em qualquer lugar, e ainda por cima com aquele fatídico barulho: tec!; Evidentemente que eu abominava aquela mania sádica de retirar espinhas em mim com uma crueldade que eu sabia intencional; evidentemente que eu achava o cúmulo que ela vasculhasse meu celular em busca de vestígios de uma outra; evidentemente que eu não concebia que ela tivesse tanto assunto pra trazer à tona exatamente numa sala escura no cinema, principalmente quando o filme era legendado; evidentemente que eu queria morrer quando ela, por motivos que eu nunca saberei, emburrava e entrava num mutismo que só acabava quando eu já estava exausto de perguntar: “o que foi que eu fiz?”; evidentemente que eu me aborrecia quando ela, naqueles momentos em que todo ser humano normal vive o “momento”, vinha com comentários que simplesmente inviabilizava o sucesso do “momento”. Tipo: “Você me ama realmente?”, “Você está pensando em quem?”, “Você está sendo muito brusco”, “Você precisa ser um pouco mais brusco”, “Você me ama?”. Perguntas pertinentes, mas extremamente inoportunas. Evidentemente que eu me irritava. Mas é igualmente evidente que alguma coisa aconteceu lá naquele “momento” de meus pais, que determinou minha concepção, coisa essa que me fez menos iracundo que os humanos normais. Irrito-me pouco e o pouco que me irrito é implícito, é por dentro, é imperceptível. E mesmo quando, aqui dentro, começa a crescer o monstrinho da ira, eu pego meu extintor e detono com ele. Essa coisa da ira me faz lembrar uma história que uma colega, Amanda, me contou, que vos conto. Amanda e Nádia são irmãs gêmeas. Quando garotas, a mãe tinha um pequeno armazém, em Porto Alegre. Ocorre que, na mesma rua, moravam duas irmãs – cujos nomes ignoro (chamemo-las, portanto, de Branca e Neve). Branca e Neve, sempre que faziam alguma compra, lá vinham elas trocar, acusando que a mãe reprovara isso ou aquilo. De modo que aquele troca-troca de produtos começou a irritar Amanda e Nádia. Numa dessas trocas, Nádia, encolerizada, soltou os cachorros em cima de Branca e de Neve; disse-lhes “as do fim”, como diria Luiz Gonzaga. E estendeu suas ofensas à mãe das meninas que, a rigor, era a demandante principal das trocas perpétuas. Branca, a mais velha, ao ver sua mãe traiçoeiramente envolvida na questão, sem que a mesma pudesse defender-se das acusações, desafiou as irmãs Amanda e Nádia, dizendo: “Suas magrelas, sai do balcão! Vem pra rua!” E, para estimular suas rivais, alcançou uma pedra de razoável tamanho e arremessou-a em direção ao balcão de madeira e vidro, atingindo, claro, o vidro. Fora a gota dágua. Amanda e Nádia, impedidas de deixar o balcão, resolveram desafiar Branca e Neve, propondo um duelo a ser travado atrás da igreja matriz. Branca e Neve, ávidas por sangue e morte e dor e escoriações e hematomas e beliscões e puxões de cabelo e ranger de dentes e fraturas, aceitaram, de pronto, a proposta. Agendaram o evento-briga para as 10 da manhã do dia seguinte, ficando acordado, previamente, que só duas voltariam para casa andando – as vivas, claro. Com olhar desafiador e com os cabelos em desalinho e os pés na poeira e trajando seus pijamas de florzinhas, lá se foram as duas garotas resmungando: “Elas vai ver! Elas vai ver”. No dia seguinte, é Nádia quem diz para Amanda: “Vamo?” “Pra onde?” pergunta Amanda. “Pra briga, bestona!”. “Ah! Vamo.” Eram dez horas, e Branca e Neve já estavam lá: mãos nas cinturas, olhar cruel e o infalível pijama. Resoluta, Nádia não deu tempo nem mesmo aos xingamentos de praxe – o prelúdio indispensável a qualquer batalha (vide Mel Gibson), foi logo para cima das irmãs Branca e Neve, batendo e chutando e desferindo golpes sem qualquer técnica: Pof! Paf! Pum! Pam!. As irmãs, pegas de surpresa, reagiram bravamente, derrubando Nádia no chão empoeirado. Pof! Paf! Pum! Pam! Nádia, num momento de rara reflexão, percebera que Amanda estava ali, a uns 15 metros, estática, olhos arregalados. E gritou: “Amanda, vem me ajudar”. Pof! Paf! Pum! Pam! A súplica tinha duas razões básicas: uma, ela estava apanhando feio; duas, Amanda, que lhe constasse, estava escalada para compor as fileiras. “Amanda, vem!” Pof! Paf! Pum! Pam!. “Amaaandaaaa!!!!” Pof! Paf! Pum! Pam! Ao que Amanda, saindo do torpor, respondeu: “Eu tô sem raiva!”. Pof! Paf! Pum! Pam! Pronto, estava explicado. Nádia, diante de resposta tão inesperada ao seu pedido de socorro, não mediu esforços para, em meio à poeira que se levantara, safar-se. Saiu correndo, seguida por Amanda, presumindo essa última que Branca e Neve não a poupariam. Chegaram a casa, onde estavam a salvo das cruéis Branca e Neve. Nádia estava irada, não com suas rivais, não com suas escoriações diversas, mas com sua irmã, a apática Amanda. Amanda, com a consciência esfacelada por ver os destroços de Nádia, numa tentativa vã de justificar-se, repetia, cabisbaixa: “Eu tava sem raiva...”. Nádia, lambendo dolorosamente suas feridas, engolira em seco a deslavada desculpa. Nada disse Nádia. Ela estava com muita, muita raiva.

26 de janeiro de 2007

Metafísica ou Saudosismo?

Para Paulinho Dagumé, obviamente!

Não sei precisar em qual de minhas encarnações fui monge, mas posso dizer que fui contemporâneo de São Francisco de Assis e, como ele, travei grandes lutas em busca da paz entre os homens. Participei, em outras vidas, de outras tantas aventuras históricas, todas elas ocorridas dentro da atmosfera bélica predominante na Idade Média. E, não obstante esse ambiente de guerras, eu sempre estive em algum ponto onde a meditação e a contrição e a oração e reflexão e predominavam. Fernando Pessoa, quando nos reunimos a primeira vez para discutir sobre o budismo, disse-me, de modo amável, mas ao mesmo tempo cruel, que meu budismo é o budismo da indiferença, da ausência, da falta de emoção, da inapetência. Ele disse mais uma série de sinônimos, que hoje, passadas tantas décadas, não me recordo. Não quis contender já que, na época, morria nosso amigo Sá Carneiro. Mas ele não perde por esperar, aquele magricela de uma figa!. Pois bem. Nesta minha vida atual, como que por uma imposição do cosmo, passei minha infância e adolescência circundado pelos sagrados ofícios, pela liturgia cristã. Durante anos, clarinetista (de mediana técnica), compondo uma orquestra sacra, ajudei a embalar as almas que, naqueles templos de outrora, freqüentavam os cultos. O rito era sempre o mesmo. Ei-lo. Em torno das 19:00 horas, a orquestra se posiciona: são clarinetes, violinos, saxofones, bombardinos, trombones, trompetes. Afinadas as vozes, entoam, baixinho, algumas peças do hinário, enquanto os fiéis vão chegando e se acomodando nos bancos de madeira. Silêncio. Muito silêncio. Muitos chegam mais cedo. Estão em comunhão. Meditam. Pacificam suas almas. Absorvem a atmosfera de paz que a igreja irradia. Como de praxe, a maioria dos irmãos vestem-se formalmente. Paletó, gravata, etc. As irmãs, saia e véu. O silêncio às vezes é interrompido por espontâneos "Glória a Deus!", que saem da garganta impelidos por uma espécie de desafogo, uma espécie de constatação absolutista. Silêncio. Às 19:30, pontualmente, um dos ministros dá início ao culto, dizendo: "Deus seja Louvado!". Todos, de pé, dizem: "Amém". Em nome de Cristo, dá início à liturgia, que principia com a entoação de três hinos, sugeridos pela irmandade. Cada cântico é antecedido de uma breve introdução, que permitirá à congregação verificar: tonalidade e o andamento da peça sacra. Cantados os hinos, o ministro convida a todos para a primeira das duas orações da noite. Todos se ajoelham e glorificam. Um dos irmãos, voluntariamente, inicia, em solo, a orar. Concluída a oração, todos se sentam. O ministro abre espaços para aqueles que queira testemunhar à igreja bênçãos recebidas. Findos os testemunhos, é aberto o espaço para o momento mais aguardado: a pregação da palavra, que consiste na leitura de um trecho bíblico, seguindo-se a sua exortação. Terminada a pregação, o ministro convida a todos para a última oração. Terminada a oração, todos ficam de pé para entoar o último hino. O ministro, em Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, encerra o culto. Os fies se despedem, e vão para suas casas. A orquestra, enquanto a irmandade sai do templo, toca o último hino, pano de fundo melódico para as manifestações fraternas entre os membros do corpo de Cristo. Dia desses, para me contrariar postumamente, releio a obra do Fernando Pessoa, onde estava o seguinte trecho: Não acredito em Deus porque nunca o vi. Se ele quisesse que eu acreditasse nele, sem dúvida que viria falar comigo E entraria pela minha porta dentro, dizendo-me, Aqui estou! (Isto é talvez ridículo aos ouvidos de quem, por não saber o que é olhar para as cousas, não compreende quem fala delas com o modo de falar que reparar para elas ensina). Mas se Deus é as flores e as árvores e os montes e sol e o luar, e então acredito nele, então acredito nele a toda a hora, e a minha vida é toda uma oração e uma missa, e uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos. Mas se Deus é as árvores e as flores e os montes e o luar e o sol, para que lhe chamo eu Deus? Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar; porque, se ele se fez, para eu o ver, sol e luar e flores e árvores e montes, se ele me aparece como sendo árvores e montes e luar e sol e flores, é que ele quer que eu o conheça como árvores e montes e flores e luar e sol. E por isso eu obedeço-lhe (que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?), obedeço-lhe a viver, espontaneamente, como quem abre os olhos e vê, e chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes, e amo-o sem pensar nele, e penso-o vendo e ouvindo, e ando com ele a toda a hora. A próxima vez que eu estiver o Fernando, vou dizer pra ele que está em jogo não é um Deus para chamar de seu. O que importa mesmo, o que de fato é relevante é não é encontrar Deus, é me achar. Por isso, na próxima vez que for tocar numa igreja, vou sugerir Paulinho da Viola. Vejam o que ele diz numa de suas canções: Pra se entender, tem que se achar; que a vida não é só isso que se vê, é um pouco mais: que os olhos não conseguem perceber, e as mãos não ousam tocar, e os pés recusam pisar. Sei lá, não sei. Sei lá, não sei não.

24 de janeiro de 2007

Simplesmente atravessei...

Há coisas que eu desejaria apagar definitivamente da memória. Deletá-las, inclusive da lixeira. Mas a luta que travam a memória e o esquecimento é infinita, como já disse Kundera. Terei de me conformar e acomodar esse registro histórico de modo que doa menos. Talvez, comentando, escrevendo sobre ele, intelectualize-o, minimize-o, reduza-o a uma das muitas ficções que já escrevi. Talvez, trazendo-o à tona, encarando-o face-a-face, vença-o. Talvez. Vamos lá. Ali pelos meus 12 anos, quando meu pai tivera um espasmo de prosperidade econômica, compramos uma casa no Bairro Patagônia, em Vitória da Conquista. Deixando, de vez, nossa casa na Avenida Sergipe – onde há um enorme aglomerado de registros igualmente deletáveis. Mas esses são outros fantasmas. Enfim, meu pai tivera um espasmo de prosperidade e tínhamos uma frota de quatro bicicletas. Isso mesmo: quatro. Uma monark vermelha, de paínho, uma cargueira, que eu e Petrônio (que éramos os únicos que trabalhávamos) usávamos para trabalhos de entrega e tudo o mais que se quisesse transportar, uma outra de cor indefinida e de modelo igualmente indefinido, e a Monark de Paulinho (Paulinho, Maurício e Fábio nada faziam nessa e nada fizeram todas as épocas passadas, presentes e futuras). Eu e Petrônio podíamos ser vistos a qualquer hora no trajeto Bairro Brasil – Patagônia, já que, para qualquer coisa, havia eu e havia ele, um era reserva do outro e vice-versa. Pois bem. Os dois bairros são ligados pela Avenida Frei Benjamim, que é cortada transversalmente pela Rua do Aeroporto (divisa dos bairros). Foi no ponto central da cruz formada por essas duas avenidas que meu drama quase vira uma tragédia. Vinha eu com a bicicleta de cor e modelo e marca indefinidos pela Frei Benjamin, rumo ao Patagônia. Sabe-se lá por que razão, eu trazia, como passageiro, Maurício, que, na época, devia estar com seus oito anos. Maurício era conhecido na nossa rua e nas adjacências como “Botijão de Gás”, que, com o uso, evoluiu para “Bujão”, alcançando, atualmente, a condição artística de Bujja. Algum numerólogo há-de me explicar o efeito do acréscimo de mais um “j”. Maurício era verdadeiramente um botijão de gás: gordinho, baixinho e sem pescoço. Empurrado, rolaria ladeira abaixo. Era esse mesmo Maurício que estava na minha traseira no trajeto rumo à Patagônia. Há muitos anos que todos na família (e fora dela) me chamam de “voador”, “lunático”, “esquecido”, etc. É que, às vezes, me pego sonhando acordado. Não sei no que pensava naquele dia. Mas, seja lá o que fosse, me fez atravessar a Rua do Aeroporto sem olhar para ver se vinha algum carro. Simplesmente atravessei... parcialmente. Faltando coisa de 1/3 para a travessia completa, um carro que vinha à minha esquerda passou pelo bicicleta um palmo de distância da bunda abundante de Maurício. Só pude perceber o vulto do carro. Atravessei a rua. Cantando pneu, o motorista do carro dera ré e, sem descer do carro, gritou-me todo o seu Dicionário de Xingamentos Essenciais. Até ai, tudo bem. Xingou e foi embora, resmungando uma série de outras coisas, que só hoje começo a entender o significado. Parei a bicicleta. Olhei para Bujja. Fiquei imaginando que, tivesse ocorrido o pior, e ele não estaria ali. Fiquei imaginando que, tivesse eu atrasado menos de um segundo, e Bujja (e eu) comporia uma dessas estatísticas que apontam acidentes envolvendo bicicletas e seus ciclistas imprudentes. Fiquei imaginando que, fosse outro o final da história, e minha mãe talvez nunca mais passasse pelo cruzamento da Frei Benjamin com a Aeroporto. Fiquei imaginando tudo aquilo que só um sujeito sonhador-lunático-esquecido-voador pode imaginar. Trêmulo, conduzi Bujja pra casa. Encostei a bicicleta no meio-fio. Tentei, inutilmente, reduzir minha freqüência cardíaca. Entrei em casa. Maínha lavava roupas no quintal. Ela hoje tem passe livre nos ônibus da cidade. Muito frequentemente, indo para a casa de minha irmã Marlúcia, passa inevitavelmente pela Frei Benjamim, no cruzamento do aeroporto, onde há, atualmente, um semáforo. E aquele cruzamento não quer dizer absolutamente nada para ela. Absolutamente nada.

21 de janeiro de 2007

Tô doido! Tô doido! Tô Doido!

Antes de Laércio enlouquecer de vez, era eu seu mais íntimo amigo. Acompanhei seu progresso em direção à loucura, e fui seu ouvinte mais que atencioso, quando, monologando, expunha para si – e, por conseqüência, para mim – sua visão das coisas e do mundo. Hoje, que o vejo com o olhar perdido em direção ao infinito, tenho a nítida sensação de que ele sabe quem sou, sabe o que estou pensando, mas, por algum motivo que desconheço, me inclui no rol de todos aqueles que ele ignora, neste mundo para o qual ele dedica sua mais perfeita indiferença. Fico observando esses funcionários todos que perambulam pelo corredor, e me pergunto: por quê?. Laércio, sujeito educado, cheio de pudores, filhos de pais honrados, irmão de Virgínia e de Péricles, ali, vestindo aqueles trapos indignos do grande pensador que eu conheci, alimentando-se como qualquer ser incivilizado, e com aquele olhar perdido em direção ao infinito. Se acaso eu estivesse próximo dele naquele momento fatal em que sua razão entrou em colapso, tê-lo-ia despertado; seguraria seus ombros com força, e gritaria em seus ouvidos: fique lúcido! Jogá-lo-ia no banheiro e despejaria água fria em sua cabeça. Se acaso eu estivesse nas imediações quando aquele “fio tênue que separa a razão da loucura” fosse diluído, desaparecesse, “reiniciaria a máquina”, para manter a configuração original. Mas eu estava distante o suficiente, e agora, impotente, nada mais me resta a fazer, senão olhar para ele e aguardar que desvie por um momento seus olhos - perdidos em direção ao infinito – para mim e me perceba, e me dê, por um instante que seja, a sensação de que me entende e que me ouve; que lance para mim, num rasgo de misericórdia, migalhas de sua atenção, sua lúcida atenção. Hoje, que me recordo de seus monólogos, não sei exatamente quem de nós dois está mais louco: “Nada disso faz sentido. Nutro meus instintos, mas eles não se satisfazem. Absorvo todos os ensinamentos que o mundo civilizado me pespega, mas eles me sufocam. Atravesso a catraca no ônibus, mas não entendo a razão de sua existência. Essa catraca é uma ofensa. Vejo Virgínia arrumando-se para ir no show do Fábio Júnior, mas não posso entender que ela não ouça uma única canção do Chico César. Mas se ela parar para escutar o Chico César, que lhe dará isso? Que importa Chico César e que valor tem ouvir Fábio Júnior?. Não gosto de cerveja, mas algo me diz que os homens me vêem menos homem por não gostar de beber. Não gosto de futebol, mas os homens me vêem menos homem por não gostar de esportes. E incomoda-me incomodar-me com o que pensam os homens. Pensem o que quiser, ora essa!. Poucas vezes vi Laércio sorrir. Sorria somente de suas próprias ironias e das bobagens que eu dizia. Hoje, quando ele esboça um sorriso, sei que ri de nós todos; de mim, inclusive. Bem que ele podia poupar-me, já que sou seu amigo. Bem que podia, sussurrando, confidenciar-me: “Cara, eu tô fingindo... hehehe”. Mas, tão logo desfaz o efêmero sorriso, lá vem Laércio, novamente, com aquele olhar perdido em direção ao infinito, relegando-me, novamente, à sua sarcástica indiferença. Saio do Hospital Afrânio Peixoto zangado com Laércio. Ri de mim, me faz de doido e me insulta com sua supra-lucidez. No trânsito, de volta pra casa, loucos de toda espécie me circundam, me acenam. Todos estão olhando para algum ponto fixo, mas só Laércio olha, com seu olhar perdido, para o infinito.

19 de janeiro de 2007

Lua

Para Daniel

Não sei quantas vezes fiz o percurso Plano Piloto – Taguatinga, indo pela Estrutural. Quem conhece Brasília, sabe que há dois caminhos que conduzem às Satélites: a Estrada Parque e a Estrutural. Em meados de 1993, quando trabalhada na Caixa Econômica (Setor Bancário Sul), terminava o expediente, ia andando para a Rodoviária. Lá, ia à banca de revistas do segundo piso, lia todas as fofocas da semana, descia. Estando com fome (em geral, estava), mandava ver num caldo de cana luxuosamente acompanhado por dois pastéis de queijo (trio da Pastelaria Viçosa). A propósito da Viçosa, tenho uma tristeza para contar: sempre fiz o percurso da Estrutural lendo, já que é uma viagem. Num determinado dia, enquanto tomava o caldo de cana, lia o Livro do Desassossego, do Fernando Pessoa. Uma garota, que estava ao meu lado, aproximou-se, interrompendo a leitura com um pergunta: ”Você não se deprime lendo essa obra?” A pergunta, feita a queima-roupa, me obrigou a responder de pronto: “Não, não deprime, pelo contrário.” Ela me disse que estudara a obra do Pessoa e que aquele livro especificamente a deixara pra baixo. Eu, besta que sou, deixei que a moça fosse embora sem obter dela telefone ou endereço. Nunca mais vou vê-la. Hoje, me pergunto: E se aquela fosse a mulher da minha vida? E se Pessoa tivesse sido colocado entre nós para ser o elo entre duas pessoas? E se estava escrito que a depressão dela, somada à minha satisfação, resultasse numa alegria estética? Lamento profundamente ter sido tão besta. Foi meu primeiro pecado. Terminei de beber o caldo. Dali, seguia para a plataforma da esquerda, onde estão as linhas de ônibus que vão pela estrutural. Sempre preferi pegar o ônibus após as sete, quando é possível ir sentado e ler. Foi numa dessas viagens que me aconteceu um dos momentos mais belos e poéticos numa viagem. Todos sabemos que as luzes das cidades ofuscam as luzes dos astros luminosos e iluminados. Ocorre que, naquela época, a Estrutural não tinha a iluminação que hoje tem. Era uma escuridão sem fim. Era noite de lua cheia. Assim que entramos na estrutural, o motorista resolveu apagar todas as luzes internas do ônibus. Meu primeiro ímpeto foi injuriar-me, já que, sem luz, não poderia ler. Mas qual não foi minha surpresa? Simplesmente dava pra ler com a luz da lua. Mas não foi só isso. Olhando pelo vidro, era possível ver tudo lá fora, como se fosse dia. Mais surpreso fiquei quando percebi que todos os passageiros, encantados, olhavam para o vidro, como que dizendo de si-para-si: “Putz!”. Em Brasília, passageiros de ônibus não são dados a entabular conversas. Cada um pega seu livro, jornal, apostila, revista, walk-man, ou dorme. Mas muito raramente se conversa. Naquele dia, era possível perceber a vontade de todos de comentarem a beleza daquela visão. Eu, que sempre fui cara de pau, disse, em voz alta: “Que coisa maravilhosa!”. Soou meio patético, mas eu não tava nem ai. Parei de ler e fiquei me perguntando: o que passara na cabeça do motorista? De duas, uma: ou ele era um incorrigível romântico ou um tremendo Caxias, capaz de apagar as luzes do ônibus por mera, inútil economia. Admiti a primeira opção. Tive a oportunidade de ir até a cabine e conversar com o motorista. Saber dele a verdade. Não fui. Foi meu segundo pecado. Por todo o percurso, fui me lembrando de canções que usaram a lua como base: “Lua de São Jorge, lua deslumbrante”; “Voa no céu, imensa e amarela, tão redonda a Lua...”; “A lua e eu....quando olho no espelho, estou ficando velho e acabado”; “Tomo um banho de lua, fico branca como a neve ...”;. Não, eu não cantei as músicas em voz alta, muito menos esta última! Mas quis...

17 de janeiro de 2007

Abacate

Minha mãe sempre se empenhou na busca de emprego – ocupação, por assim dizer – para mim e para Petrônio. De um lado, porque tínhamos que contribuir com o orçamento de casa, de outro, porque, trabalhando, não estaríamos fazendo traquinagens mundo a fora. Nessa de ocupar-nos, experimentamos tudo, eu e Petrônio. Cito somente eu e ele porque somente nós, da família, trabalhamos duro na infância. Paulinho, Maurício e Fábio, se perguntados, dirão que também eles labutaram muito. Não acreditem. Conheço a história de todos os oito filhos de paínho, e posso assegurar que somente eu e Petrônio soubemos o que significa labutar. De tudo fizemos um pouco. Vendemos picolé: caixa de isopor pendurada no pescoço, com 50 picolés devidamente enfileirados. Saíamos gritando pelas ruas da cidade: “Olhaê o Picolé!” Nunca lucrei nesse ramo. Aliás, sempre tive prejuízo. Já Petrônio, sempre chegava com o bolso abarrotado de dinheiro. Minha incompetência para vendas estava clara desde cedo. Engraxamos sapato: um desastre, já que a demanda era pequena e tínhamos uma concorrência especializada. Somente uma vez lucrei engraxando. Numa destas tardes amenas de Vitória da Conquista, estava eu a ocupar-me de alguma coisa de menino (em geral ocupações muito sérias), e eis que um outro garoto me diz que um senhor da terceira quadra após a nossa precisava de um engraxate. Fui. O homem havia decidido engraxar todos os seus sapatos. Eram doze pares de sapatos!! Cinco dos quais já estavam sem qualquer condição de uso, mas o meu cliente estava disposto a dar mais uma chance para os mesmos. Meu cliente pediu-me que apresentasse o preço por atacado, já que o valor praticado por unidade era impeditivo para sua capacidade de pagamento. Assenti positivamente. Enquanto engraxava, meu cliente resolveu narrar o tempo em que era criança, e fez desfilar na calçada todos os fatos ocorridos desde que o pai viera de Ilhéus para trabalhar como topógrafo (palavra que meu ouvido inaugurara naquele momento). Mas esse é só um atalho. Voltemos à labuta. Vendemos “mói de coentro”. Minha mãe sempre plantou de tudo no fundo do quintal e tudo que ela plantava eu e Petrônio tínhamos que vender. Coentro, chuchu, alface, cebolinha... esses itens eram vendidos a partir de uma estratégia infalível (para Petrônio). Como são elementos que toda dona de casa usa para fazer o almoço, e toda dona de casa que se preza em Vitória da Conquista começa a movimentar a logística culinária em torno das 09:30, ali pelas 09:00, eu e Petrônio já estávamos com nossas bandejas na cabeça, aos berros de: “Olhaê o coentro!”, “Olha o chuchu!”. Paulinho, Maurício e Fábio jamais saberão o que é vender tais itens. Também nunca saberão o que significa gritar pelas ruas em busca de clientes. E muito menos saberão o que significa ser atendido pela janela por donas de casa com seus aventais “sujos de ovos”. Claro que, além de vender os produtos da indústria do quintal de maínha, havia outras múltiplas ocupações: lixar peças de carro em oficinas (sob o odor de carbureto), conduzir, em carrinhos de mão, as compras das madames indo feirinha do Bairro Brasil até os confins do Mar Morto, etc. Mas o que mais me pesou (não sei se Petrônio tem a mesma opinião) foi vender abacate. Deus do céu! Vocês sabem quanto pesa um abacate? E 10, sabem? Pois bem, lá em casa, tínhamos 5 pés de abacate. Durante todo o ano eles frutificavam. Durante todo o ano eu e Petrônio tínhamos ocupações, e vender abacate era uma delas. Minha mão se regozijava quando um dos pés de abacate produzia exemplares que pesavam até um quilo (sim, um quilo!). Agora, imaginai: uma bacia de alumínio na cabeça contendo 10 ou mais abacates. “Olhaê o abacate!”. Não sei se tais ocupações nos fizeram, a mim e a Petrônio, homens melhores, mas uma coisa é certa: devemos nos alegrar de maínha nunca ter cultivado melancia em casa, muito menos abóbora.

15 de janeiro de 2007

Vida

Para Manoel

Vou morrer. Aos poucos, a idéia da morte vai se acomodando. Aos poucos,
saber-me efêmero vai se transformando numa constatação indolor. Aos poucos, por
uma certa aproximação – cumplicidade, ou co-gestão – com o processo criativo
universal (ok, chamai-o de Deus), meio que vou me convencendo de que também eu
estou submetido à grande regra: fenecer.

Vou morrer. Olho para trás e vejo que as múltiplas, diversas e complexas perguntas feitas a mim mesmo e ao mundo ao meu redor começam a ser respondidas, não pela leitura dos filósofos, não pelo estudo da cultura oriental e de sua religião, não pela meditação, mas por mim mesmo, inconscientemente. Aos poucos, ao invés de obter respostas, subtraio perguntas. Aos poucos, toda a inquietação se transforma numa
confluência, coesão com o todo. Aos poucos, a Verdade, que busquei, me busca.
Aos poucos, a resposta, tantas vezes escorregadia, enrosca-se em meu pescoço,
cachecol em linha de tricô.

Vou morrer. E me irmano com meus ídolos. Dentro em breve – para a história, o que são 100 anos? – Dentro em breve estarei com Ele. Mas Ele já está comigo. Dentro em breve, deixo de ser protagonista, exclusivista, egoísta, narcisista, para ser tudo, todos, total. Dentro em breve, esta sensação de agora – nirvana, é a sensação - vai consumir-me todo, vai envolver-me todo, e todo me fará viver.

Vou morrer. E só agora, quando deixo de lado toda a seriedade, é que vejo o quanto essa brincadeira é séria. Só agora, pleno, posso revoltar-me, encolerizar-me, reivindicar, gritar, humanizando-me, emocionando-me, permitindo-me, ignorando-me. Só agora, “onde vês eu não vislumbro razão”.

Vou morrer. E já formulo – data vênia, Senhor Deus – uma revisão no modelo operacional em uso no universo. Algumas leis universais merecem ajustes, adendos, emendas. Talvez burocratize um pouco, mas alguns ritos podem ser sistematizados, sem prejuízo algum à idéia central da Criação.

Vou morrer. E só agora, quando completo 36 anos, vejo que faço 35. Em janeiro de 2008, hei de completar 34. Nesse ritmo, em 2042 volto a sonhar.

Vou morrer. Vou me deitar no colchão macio da Verdade e dormir profundamente. E vou sonhar com a nova Vida que me espera, e me preparar para minha segunda morte, para acordar para uma nova vida, e me preparar para minha terceira morte, para acordar para uma nova vida, e me preparar para minha quarta morte, para acordar para uma nova vida, e me preparar para...

13 de janeiro de 2007

Felicidade

Alguém já disse que a consciência é o primeiro requisito para a infelicidade; que ser consciente é ser infeliz; que saber da real realidade é estar impedido de ser feliz; que saber da fome na mesa dos outros nos impede de sorrir; que a dor na alma de muitos não nos dá direito a gozar o que quer que seja; que estar ciente das calamidades todas, das tristezas todas, das injustiças todas, dos medos todos, das guerras todas, das vicissitudes todas, das mortes todas, das feridas todas, de todas as paixões não correspondidas, de todos os sonhos não realizados, de todas as vidas não vividas nos impossibilita de sequer pensar em felicidade. Alguém já disse que, enquanto não soubermos a Verdade, não há como ser feliz. A felicidade, segundo esse mesmo alguém, decorre do pleno desconhecimento do sofrimento da humanidade. Ser feliz, ainda que momentaneamente, será sempre um leve baixar das pálpebras, breve silenciar, breve deixar de ouvir. Faz quatro semanas que fui feliz por cerca de 15 minutos. Era domingo, peguei o carro e sai sem rumo, dirigindo mui lentamente pela Avenida Oceânica. Para quem sai de Ondina, tem-se, à esquerda, os prédios da Orla Marítima de Salvador, e, à direita, o mar e suas incansáveis, perpétuas ondas. Liguei o rádio, que mantenho sempre sintonizado na 107.5. Rádio Educadora da Bahia. Fazia sol em Salvador, aquele sol das 17:20h, quando ele já se esconde atrás do Farol da Barra. O locutor, com voz de domingo e calma de baiano, anunciou: “Estamos apresentando Seleção do Ouvinte. Agora, ouçamos, de Ângela Rô Rô, Amor, Meu Grande Amor”. No sinal, ao meu lado esquerdo, uma mulher, na mesma sintonia, fechou os olhos quando dos primeiros acordes, sorvendo as primeiras notas da canção, como se fossem goles de água no deserto. Fiz o mesmo, com sede igualmente desértica, mas abri os meus antes de ela o fazer. Ao abrir os seus, e olhando para sua direita, flagrou-me com seus olhos melodicamente cúmplices. Por um curtíssimo lapso de tempo, fomos felizes; essa felicidade de quem baixa momentaneamente as pálpebras, mas mantém atentos os ouvidos.

10 de janeiro de 2007

O Fogo do Inferno

Nunca a visão do inferno esteve tão nítida quanto naquela tarde. Nunca jamais meus pecados estiveram em alerta geral. Nunca. Digo porquê. Visito, vez por outra, um sebo existente na Estação Central da Lapa. É talvez o mais sujo dos sebos que conheço, e não é tarefa fácil achar algo digno de se comprar ali. Mas a menina que lá atende é vítima de meus comentários idiotas, de modo que vou mais em função do bate-papo que da possibilidade de achar alguma raridade. Na tarde daquele dia, em meio à enorme movimentação na Lapa, um sujeito, de terno e empunhando a bíblia, pregava aos transeuntes-pecadores. Não costumo resistir a tais manifestações públicas. Parei ao lado de uma das lojas para ouvir a pregação. Pelo conteúdo, não tive dúvidas que ele falava do apocalipse e, portanto, do fim do mundo. Estranhei, no entanto, que, embora falasse do último livro da bíblica, a sua estivesse aberta no meio – ali pelas proximidades do livro dos Salmos. Mas logo percebi que seria impossível segurar o microfone numa mão e a bíblia noutra sem que a mesma ficasse desequilibrada se aberta no último livro. Enfim. Em brados nunca dantes ouvidos, ele fez uma descrição minudente acerca da infra-estrutura inflamável do inferno, da eficiência de seus satânicos operários, do enorme número de recursos de sofrimentos disponibilizados àqueles que para lá fossem compulsoriamente indicados. Feita a descrição do inferno, o pregador deu início aos esclarecimentos quantos aos pré-requisitos necessários àqueles que vão pro inferno. Foi quando ele começou a falar do pecado. Enquanto ouvia, meditava sobre meus. Sim, já pequei. E peco. Mas algo estava me dizendo que havia certa desproporcionalidade entre o pecado e a resposta aos mesmos: o fogo inferno. Errei muito, é verdade. Mas ficar por toda a eternidade com um tridente em brasa viva me sendo inserido (sic) no traseiro, convivendo com satã e seus asseclas, comendo, literalmente, o pão que o diabo amassa, não dá pra aceitar. Pensei em retrucar, mas vi que o palestrante não iria parar sua pregação para ouvir perguntas. A essa altura, ele era puro suor. O homem gesticulava como se estivesse – sei que é contraditório – endemoniado. Num dado momento, percebi que ele percebeu que eu era o único cidadão que parara para ouvi-lo. Todos os demais patrícios estavam, como formigas, indo ou vindo, com pressa. Percebendo que eu estava atento e que era o único que o ouvia, o pregador agora falava olhando para mim. O fato de ter um expectador, fê-lo dar maior ênfase às palavras e aos gestos, numa teatralização de dar inveja a Autran Dourado. Falava olhando para mim. Pelos olhos dele, vi que ele estava falando a um cúmplice, dialogando com alguém que o estava prestigiando. Havia um quê de gratidão naquele olhar. Em meio à multidão de transeuntes-pecadores, só um consciencioso-pecador estava ali para ouvir a voz do senhor – aquela que clama no deserto. Ocorre que eu tinha que ir embora, já tinha ouvido o suficiente sobre satã e seus talentos infernais. Mas achei que seria deselegante sair, já que, agora, o pregador falava somente para mim, tendo ignorado a todos – aqueles mal-educados-transeuntes-pecadores – já que todos o ignoravam, muitas vezes até esbarrando na pequena caixa de som instalada num dos pilares da Estação. O certo é que tive que aguardar até final da pregação. No final, ele passou a falar que só crendo em Jesus poderíamos nos safar das garras de satã. Falou que, se cresse, estaria salvo e, automaticamente, seria incluso na lista dos que habitariam os céus. Condenou aqueles que se apegam em estátuas, mitos, falsos profetas, dinheiro, etc. “Porque só Jesus Salva!!!”. Foi quando me lembrei de um comentário do Mário de Andrade: “Deus me perdoe, mas estou pensando em Jesus”, no conto Peru de Natal.

5 de janeiro de 2007

VUCU VUCU!

Em razão da publicação do post Homem é Tudo Igual, logo abaixo, dois assíduos leitores emitiram opiniões divergentes acerca do tema. A blogueira Helena, polemista de alta estirpe, provocou-me a dar publicidade ao debate. Atendo ao pedido. Segue, portanto, por ordem, o pedido da Helena, seguido de seu primeiro posto. Logo após, a réplica de Fábio e, por fim, a tréplica da Helena. Registro que, sem autorizaçao dos bravos oponentes, fiz ajustes nos textos: abreviações do tipo "q", que transfomei em "que". Nada que tire o sentido pretendido pelos debatedores. Segue, para vosso deleite, Vucu-Vucu!

SUPERAÇÃO: Eu quero pedir ao Sr' Dr" Editor do Blog, que se supere e reúna, olho no olho, os participantes desse blog. Seria um vucuvucu sem tamanho...

POSICIONAMENTO INICIAL DA BLOGUEIRA HELENA: Até quando certos tipos de homens vão concordar com Vandinha? Tudo solto mesmo.... mas até quando? Valorizar atributos femininos que não duram muito tempo: tudo em cima para poder ficar solto, é bem coisa de homem machista. Mas me contem, de quantas Vandinhas é feita uma mulher? Uma mulher bonita pode parar o trânsito e provocar acidente sem estar "com tudo solto", é o tipo de mulher que chama atenção pelo que é e, inevitávelmente, os machistas se rendem aos seus atributos que manam de sua postura, sem perceber que os mesmos atributos encontrados em Vandinha ficaram pra depois. As mulheres são as primeiras a se desvalorizarem, usando esse tipo de apelo para chamarem atenção, tranformam-se apenas num objeto, uma nada descartável... simplesmente desvalorizada.

RÉPLICA DO BLOGUEIRO FÁBIO: Minha cara Helena, não me queira mal, que eu só sei querer bem, mas promovamos, juntos, uma reflexão sem fins lucrativos: não seria Vandinha mais uma portadora permanente dos grandes carnavais da libido? Não representaria Vandinha - e como diria Milan Kundera, "furai os olhos da Morena, murchai os peitos da morena" - a categoria feminina que traz consigo os
instintos mais viscerais da Era Mesozóica? Para mim, que não me situo entre os
machistas puro-sangue, Vandinha precisa ser diariamente exaltada porque
desprovida das neuroses que tornam as relações humanas convalescentes...
Vandinha resgata em mim os aspectos menos hostis de minha existência, ela faz
brotar em mim o sentido do grande vão que é existir e de como nós chafurdamos
nossa cara na lama em busca de ilusões desconexas. Quero louvar Vandinha e dizer
que ela movimenta a economia da capital baiana quando promove desastres que
culminam na boa vida financeira das oficinas, dos setores de seguro... Além, é
claro, dosa componentes audiovisuais...

TRÉPLICA DA BLOGUEIRA HELENA: Meu adorado Fábio, eu só acho que a valorização feminina por seus atributos, um vazio que provém daqueles que não conhecem uma mulher de verdade, afinal, o que hoje pode ficar tudo solto, logo logo não vai estar mais assim tão em cima para que fiquem soltos, e ai? O que as próprias mulheres que se prestam a esse tipo de papel desvalorizante vão ter de bom? Eu só acho que há uma grande desvalorização feminina, e sou obrigada a reconhecer que a culpa disso é nossa mesmo... Sinto-me ultrajada com certos comentários que fazem a respeito de nós, da forma com que se referem ao nosso corpo. Só mais uma vez eu repito: a culpa é nossa mesmo, por sermos tão coniventes e fúteis e vazias, na maioria das vezes. E outra coisa, seu comentário, nasceu machista desde seu subconsciente... Você é um machista nato. E, a propósito, quero ser para você como um reflexo no espelho... só me queira bem!

4 de janeiro de 2007

Deus é Amor

Não tenho a menor idéia de qual era o nome de Neném. A única coisa que sei é que foi essa a denominação usada quando alguém entrou correndo em casa, dizendo: Neném furou Paulinho. Neném era/é o filho mais velho de seu Edvaldo, marido de dona Néza. Edvaldo sei se tratar de nome protocolar, mas Neném e Néza com certeza era para o uso vulgar. Quem sabe um dia eu venha a conhecer a identidade desses seres que povoam minha memória? O certo é que Neném, por um motivo evidentemente banal – já que, em criança, motivos banais nos levam a ações pouco usuais –, dotado de metade de uma tesoura, furara Paulinho em região não mortal – até porque, Paulinho está vivo. À parte o desespero de maínha e o drama vivido pela vítima, eu e toda a molecada da rua tínhamos assunto para todo o mês. Eu, irmão da vítima, era consultado por crianças de bairros vizinhos e pela molecada do colégio e por tudo quanto é curioso doutrora, a quantas andava a situação de Paulinho, que convalescia no quarto de maínha, onde fora instalada uma espécie de UTI caseira. A história, de tão repetida, se tornara algo mecânico para mim. O orifício, que originalmente levara uns 7 pontos para ser fechado, eu o ampliei o suficiente para deixar meus interlocutores boquiabertos. Na minha versão, o sangue derramada já não mais cabia no açude do Angicus, o choro de maínha era um lamento, a ira de meu pai, a cólera dos Deuses. A narrativa ganhara contornos policiais; o tempo, na minha estória, comportava mais horas que as horas originalmente havidas para testemunhar o fato. Neném furara Paulinho nas proximidades do umbigo, mas a mim me parecia mais atraente dizer que, por míseros milímetros, e a lâmina da tesoura não atravessara o coração do pobre, oh!, pobre irmão Paulo. Neném furara Paulinho. Durante cerca de duas semanas, era esse o único tema da Avenida Sergipe, e era esse o único tema de minhas conversas no campinho de futebol, na esquina de Beto, onde jogávamos gude, no corredor da casa de Kinga, e, claro, na minha sala. Ao final de alguns dias, para minha tristeza, Paulinho já andava sem dificuldades, e a conversa perdera muito do brilho. O tempo jogou água na fervura. Paulinho se reestabeleceu. Recentemente, décadas depois da fatídica tesourada, voltei à Avenida Sergipe. Soube que Neném é hoje Diácono da Igreja Deus é Amor. Ostenta, sério, uma visível barriga e se veste com a elegância típica dos evangélicos: paletó, gravata, bíblia, calçados sociais, e uma caneta bic, elemento indispensável a um diácono. Não sei o que Paulinho diria a Neném, caso o destino os reunisse numa dessas encruzilhadas, mas ele, Neném, provavelmente, diria: A paz do Senhor, irmão.

O Cabo das Tormentas

Foi Celeste quem me conduziu àquele naufrágio emocional – e físico. Conto como se deu.
Quando meu amigo Tito Lívio me convidou para passar uma semana na Península de Maraú, no extremo-sul da Bahia, eu já havia chegado a outro extremo: o de querer fugir de minha própria casa. Celeste era um espetáculo de mulher. Bonita, bem informada, um arsenal ambulante de regras de etiqueta. Mas sofria horrores, de si para si, por não ter concluído o segundo grau – e (cá entre nós) acho que o primeiro ela também não concluíra. Acho. Mas isso é irrelevante.
Celeste chegou em minha casa por solicitação de minha tia, que me assegurara, mãos erguidas aos céus (para obtenção da cumplicidade divina), tratar-se de moça de boa índole e que, por razões de saúde, deveria fazer caminhadas diárias na areia da praia, para ajustar a curvatura inferior dos pés. Dizia minha tia: Meu filho, você vive viajando. Não pára em casa. Deixa ela ficar em seu apartamento, só por uns dois meses... Só hoje, que olho para retrovisor de minha vida, posso ver que, por trás daquele pedido, havia um ardil para que o Sobrinho Viajador, afinal, se casasse. Era o que queria minha tia. Era o que queria minha mãe. Era o que queria Celeste. Mas, definitivamente, não era o que eu queria. Muito menos com Celeste, é bom que se diga.
Celeste, aquele espetáculo de mulher, que, sem que eu pedisse, tratava com esmero megalomaníaco minha casa, que enfileirava meus livros com régua, que reagia militarmente a qualquer presença de pó nós móveis, que – vejam vocês a que ponto se chega – olhava com um esgar de repugnância quando, porventura, eu saía com uma calça jeans com a barra desfiada, que, suposta esposa amada e dedicada, aguardava-me para o jantar, que, definitivamente, tomara posse. Lá pela quinta semana de convivência (período em que, coincidentemente, não viajei), por mais casto, puro, respeitador, honesto e probo que tivesse me comportado durante aqueles dias de matrimônio compulsório, ei-la que, vendo-me deitado em minha cama, lendo, faz a clássica pergunta: Você se importa se eu me sentar na sua cama? Pensei em fazer-me de desentendido, fingir ser eunuco, tratá-la como irmã (ou prima), ler para ela trechos do livro que tinha à mão, enfim, dar uma de joão-sem-braço. Mas, seja por minha iniciativa, seja pela dela, eu estava diante do inevitável. E cedi. Cedi durante cerca de oito meses. Durante oito meses, sem amar (porque eu não a amava), fui amado por Celeste, e fui tratado como seu (no que há de mais possessivo nesse pronome). Amando-me, ela deixou vir à tona todos os esperados comportamentos de esposas possessivas (ainda que compulsórias): ciúmes, controle sobre a vítima, controle sobre o que a vítima come, veste, lê, pensa, faz, não faz, desfaz, refaz. E, para meu espanto, houve um declínio algo preocupante no requinte com que se punha à mesa. Como fora enfermeira em outras eras, brindava-me, no almoço ou no jantar, com a narração realista, pungente e cruel do histórico hospitalar de todos os pacientes a que assistira. Invariavelmente, tais narrativas iniciavam-se tão logo erguia a primeira porção de comida à fome. E lá vinha ela: Quando eu estava no quinto mês de estágio no Hospital Roberto Santos, fui cuidar de dona Eulália, que tinha... Desse tinha em diante, por cerca de uma hora, ela me trazia para a mesa a visão clarividente de dona Eulália, cardíaca, de seu Jérson, Relojoeiro, de seu Paulo, aposentado, de Virgínia, a acidentada, de Magno, sifilítico, de Vicente, cobrador de ônibus; enfim: o elenco era maior que o número de figurantes d´A Paixão de Cristo, e suas enfermidades nem mesmo Almodóvar poderia vislumbrar sem um quê de pia compaixão. Esses e outros atributos (dos quais vos poupo) davam ao conjunto da obra uma moldura trágica. E eu precisava fugir, antes que completasse nove meses de relacionamento. E fugir antes que, valha-me Deus!, um rebento, o sangue do meu sangue, viesse compor a tríade surrealista. Foi nessa época que meu amigo Tito Lívio, de férias, iria passar uns dias num paraíso no sul de minha terra. Luiz, dizia-me Tito, vamos eu, a Ísis, minha sogra e a família de minha cunhada passar uns dias a ver o vento despentear os cabelos dos coqueiros. Venha você e sua... namorada... Fui. Sem Celeste. Criei todas as condições necessárias para que ela não fosse. Mas ao fim, cinicamente: Oh!, Celeste, sinto tanto que você não possa ir. Você sabe o quanto me é cara a sua presença! E emiti mais uns três ou quatro “Oh!”. Para quem não conhece, a Península de Maraú é um paraíso. E, por isso mesmo, chegar lá é uma via crucis: Deixa-se o carro na cidade de Camamu, pega-se um barco que, em uma hora e meia, nos deixa em Maraú. Dali, pega-se uma jardineira até o extremo leste da península. Lá, diante do mar, algumas pousadas aglomeradas formam a única visão da presença de civilização no local. Pronto. No mais, ler, contemplar as ondas, mergulhar, comer peixe, meditar, tocar violão, observar os cardumes coloridos, e, à noite, o luar. Passados alguns dias e algumas noites, aquela rotina de paz – um breve intervalo em minha rotina de infernal claudicância –, se, de uma lado, era um alento, de outro, provocara uma espécie de estupor em mim, abrupta que fora a fuga e drástica que estava sendo a mudança de ares. - Tito, vou embora. - Homem de Deus! - Tenho compromissos inadiáveis. - Mas homem de Deus!Naquele fim de tarde, depois de muitas partidas de frescobol, Tito, ainda incrédulo de minha... partida, explicou-me: Antônio, o barco sai de Maraú, às 07:00 da manhã, para Camamu. Não haverá jardineira que posso levá-lo até lá. Logo, você terá de levantar-se às 04:00 (03:00, considerando o horário de verão), caminhar pela praia até o extremo norte da península e, lá, pegar o barco. Considerando que sua mochila pesa 5 quilos, a caminhada na areia da praia, por três horas, fa-la-á pesar 30. Mas como seu compromisso é... inadiável.. Naquela noite, jantamos e jogamos conversa fora. Levantei-me no horário previsto, despertado pelo Tito. Peguei a mochila, despedi-me dele e da Ísis, e saí porta fora. Qual não foi minha grata e poética surpresa?! À minha frente, uma constelação contracenava com a lua cheia, sobre o mar, que mugia alto no silêncio ensurdecedor daquela madrugada. Parei por um instante e lamentei estar sozinho e não ter com quem compartilhar aquele outro espetáculo. Caminhei alguns metros tendo, à minha esquerda, a relva e os coqueiros – visíveis somente pela luz tênue da lua –, e, à minha direita, o mar –, visível apenas pelas espumas das ondas da maré alta e pelos íris da luz nas ondas. E, no horizonte, como quem olha uma bola de futebol no campo, a lua. Depois de andar por três minutos, a luz da pousada já estava distante, e, daí em diante, só nas proximidades de Maraú é que encontraria alma vivente. Depois de 10 minutos, minha imaginação começou a transformar o espetáculo poético no mais amedrontador dos filmes. Primeiro que o barulho do mar fazia-me crer que, a qualquer momento, um monstro gigante viria à tona e me engoliria, conduzindo-me, como a Jonas, para as profundezas do mar. Segundo que a lua, outrora bilaquiana, tornara-se um astro de dimensões colossais, um Olho Gigantesco do Universo que me acompanhava. Terceiro que, à minha esquerda, a selva poderia produzir (assim eu imaginava) uma alimária perversa, com presas de mamute, que me faria correr em desespero para o mar, onde encontraria o Monstro das Profundezas. Depois de 20 minutos, já estava assombrado comigo mesmo. Eu, minúsculo ser, sob a mira do Olho Gigantesco do Universo, oprimido pelo mar sem fim, pela selva selvagem, e pelo barulho do mar. Decidi que deveria voltar à pousada já que faltavam duas horas e meia de caminhada. Mas, brioso, mudei de idéia e dei continuidade à tortuosa, amedrontadora caminhada. Ali pelas 6 horas – quando todos os pensamentos malévolos já tinham feito pousada em minha cabeça, quando todos os arrepios já me tinham acometido, quando a profecia do Tito Lívio relativa ao peso de minha mochila se cumpria, quando o Olho Gigantesco do Universo já ia mais alto (e me oprimia) –, olho para trás, por sobre o ombro esquerdo, e pude ter o vislumbre – só o vislumbre – de algo que se movia no mesmo rumo que eu, mas que, pelo escuridão que nos circundava, impossível distinguir se era a Alimária Com Presas de Mamute, se o Monstro das Profundezas do Mar, se um Emissário das Trevas Profundas ou se, tão somente, uma criação de minha mente assustada, terrivelmente assustada. Pensei em jogar a mochila e sair correndo. Mas, pensei melhor, se for o que estou pensando, correr será em vão. Mudei de idéia. Brioso, disse: Boa noite!. Mas disse-o com timbre de voz alto (e trêmulo), iludido pela idéia de que poderia assombrar a assombração. Não houve resposta. Mais à frente, quando eu já me preparava para desmaiar, a assombração disse: A maré está alta! Deus. Quase que grito por minha mãe, por Deus, por Jesus. Não desejo nem a Osama Bin Ladem tamanho sofrimento. A maré está alta! Era isso que retumbava em meu ouvido. Acalmei-me quando veio a pergunta: Tá indo pra Maraú?. - Tô – monossilabicamente trêmulo. - Também. Mora aqui? - Não – monossilabicamente trêmulo.
- Vai pegar o barco pra Camamu? - Vô – monossilabicamente trêmulo. - A maré tá alta, né?!
- Tá – monossilabicamente trêmulo. Para minha alegria, à minha direita, as nuvens no horizonte foram parcialmente iluminadas pelos raios do sol, que ainda não despontara. Só isso,
só essa certeza de que o sol estava vindo, deu-me alento suficiente para
enfrentar a assombração que, diga-se de passagem, era bem cordial. Tomei coragem
e perguntei de onde era. Ele (ou ela) disse-me que os pais tinham terras na
região e que estava indo para Itabuna. Quando o sol tomou o lugar da lua, pude
ver o rosto da assombração. Era um rapaz de uns trinta anos, com uma mochila –
maior que a minha – às costas. Por orientação dele, pegamos um atalho por entre
os coqueiros, por onde chegaríamos mais rápido às embarcações. Às 06:55
estávamos sentados no barco, com mais algumas pessoas. Ele então olhou para mim
e disse:
- Qual seu nome?
- Antônio Tibúrcio.
- Posso lhe dizer uma coisa, Antônio.
- Sim.
- Eu nunca, nesses meus trinta anos, senti tanto medo na minha vida. Quando você disse “boa noite” daquele jeito, eu quase tive um troço. Por que você deu aquele grito tão... sei lá?.
Ele não precisava saber do que se passava comigo. E minha vaidade falou mais alto.
Chegamos em Camamu. Peguei um ônibus para Salvador e cheguei em casa. Joguei a mochila de 30 quilos no chão. Retirei os sapatos e fui ligar o som, quando percebi que haviam
cortado o fornecimento de energia durante minha viagem. Previ que, naquela
noite, iria enfrentar nova escuridão, o Olho Enciumado do Universo, o Monstro
das Profundezas da Alma, o Fantasmas do Espírito dos Vivos, e aguardar,
impaciente e trêmulo, pela aurora.

Teoria da Escala-Crística - Parte III

Em face dos feriados de fim de ano, só hoje estamos publicando a terceira e última parte da série de entrevistas com a Dra. Dhanada. Esta ultima etapa terá a participação de especialistas nas áreas de sexologia, sociologia, filosofia e psicologia. Leitores de notório saber científico que, tomando conhecimento da certificação da Teoria da Escala-Crística, e cônscios do que isso significa para a humanidade, enviaram suas perguntas à Dra. Dhanada que, diga-se de passagem, tem sido solícita em todas as nossas entrevistas, não se negando a responder a nenhuma pergunta. Lamentamos, leitores, que as perguntas formuladas nesta última etapa tenham revelado um lado um tanto quanto passional da personalidade da Dra. Dhanada. Eis, pois, as questões levantadas.

[Pergunta formulada pelo Dr. Charles Darwin, das Ilhas Galápagos] Dra. Dhanada, em princípio, formular qualquer pergunta sem ter lido seu artigo é sempre temerário, já que os elementos de que dispomos são somente suas respostas – em geral objetivas – às perguntas de leitores do jornal Radical News e do blog Cem Fins Lucrativos; espero, inclusive, que, o mais brevemente possível, venha a público o referido artigo, e só então poderemos, mais apropriadamente, nos posicionar (sic) no tocante (sic) ao tema introduzido (sic) por vossa senhoria. Seja como for, esclareça-me: Para que os membros do CCTC certificassem a Teoria da Escala-Crística, quanto de propina foi necessário? Qual a origem do dinheiro? Quem está por trás disso tudo, já que a senhora, pelo que se vê, não passa de inocente útil? Que interesses estão em jogo para que teoria tão infundada e carente de qualquer racionalidade possa se transformar em parâmetro de medição de virilidade?. Dr. Darwin, antes de mais nada, saúdo-o. Conheço seu trabalho e sua história, que são exemplo de persistência e de árduo esforço. Vou responder às suas perguntas do final para o começo. O senhor qualifica a Teria da Escala-Crística de Infundada e carente de racionalidade. Quero aguçar sua memória, lembrando-o de que adjetivos muito, muito piores foram usados para qualificar a sua teoria da seleção natural. Não foram poucos os seus detratores; não foram poucos os que o ridicularizaram; não foram poucos aqueles que, partindo de premissas menores, julgaram-no demente. Quero crer, Dr. Darwin, que a leitura do nosso artigo e, quem sabe, a leitura do conjunto de papéis que o fundamentaram deva desanuviar qualquer dúvida ainda existente e, quem sabe?, ajudá-lo a melhor se posicionar (sic) quanto ao tema. Estranha-me, devo confessar, que o senhor prefira julgar-nos previamente a qualquer análise, negando-nos, ao menos, o benefício da dúvida. Quanto à acusação de que a certificação da Teoria da Escala-Crística junto ao Comitê de Certificação de Teorias Catastróficas-CCTC tenha sido obtida à custa de artifícios ilegais, saiba que vou processá-lo por essa injusta ilação. Tomara que a teoria da seleção natural, na qual acredito, dê cabo, o mais rápido possível, de gente de vossa espécie (a pior das espécies, é bom que se acresça).

[Pergunta formulada pela sexóloga, e membro (sic) do Partido dos Trabalhadores, Mata Hari] Dra. Cristina, sou leitora assídua do Cem Fins Lucrativos, cujos temas que levanta ora são inúteis, ora não tem nenhuma utilidade. Não obstante, fiquei deveras estupefata quando me deparei com o post que deu início a essa polêmica tão polêmica. Estou convencida (sic), sem que para tanto necessite aprofundar-me no tema, de que a Teoria da Escala-Crística só vem certificar aquilo que até Verbênia, minha auxiliar, já apontava antes mesmo de eu pretender ser âncora do TV Mulher (antes, muito antes que qualquer coisa). Nunca neste país (sic) uma teoria se aproximou tanto do pensamento popular (empírico, meu caro Watson). Nos arredores dessa teoria (corroborando-a, portanto) esteve gente como Sigmund Freud – em cuja obra há inúmeras passagens que validam a Teoria da Escala-Crística (exceto na Interpretação dos Sonhos, onde o que está em jogo é só polução, desperdício imenso de sêmen); gente como Maslow – em cuja Hierarquia das Necessidades, voluntária ou involuntariamente, se avizinha da sua Teoria; gente como Roger, do Ultraje a Rigor que, em duas canções, dá mais insumos à Teoria da Escala-Crísticas, são elas: "Eu gosto é de mulher" (... vou te contar o que me faz andar, se não é por mulher, não saio nem do lugar...) e "Sexo" que situa com precisão cirúrgica o fato sociológico: “Sexo, me dá sexo! Mas o que esta besta pensa que é pra decidir?!”; gente como Renato Russo – em cujas letras está a ratificação da vossa teoria; basta ouvir "Eu sei" (“... Sexo verbal não faz meu estilo, palavras são erros e os erros são seus”); gente como Charles Darwin, que, assim como a senhora, não foi reconhecido e quase foi apedrejado por conta de sua Teoria da Seleção Natural, coitado. É lá, na sua teoria da Seleção Natural, que Darwin, nos arredores do tema, quase chega ao ápice: “A Teoria da Escala-Crística”. Ele, onde quer que esteja, deve estar vibrando por saber que a senhora chegou àquele lugar que ele só pôde vislumbrar à distância, no distante horizonte do avanço científico. Poderia aqui citar outros tantos grandes nomes que, periférica e superficialmente, abordaram o tema, mas isso implicaria em dezenas de posts. Enfim, dito isso, pergunto: Eram os Deuses Assexuados?. Mata, permita-me a intimidade, é com um misto de alegria e orgulho e queijo que acolho sua pergunta. De fato, como já disse alguém antes de mim (sic), se cheguei aonde cheguei, é que estive apoiada no ombro de gigantes. Apoiamo-nos em diversos pensadores, desde Buda até Devana Babu, para chegarmos às conclusões que chegamos. Não queremos o mérito pela Teoria. Tais méritos, dividimo-los com todos aqueles que, periférica ou superficialmente, deram sua contribuição à Verdade que só agora, com a certificação da Teoria da Escala-Crística, vem a lume. Todos, portanto, foram instrumento usados pela evolução para que a humanidade, na altura de sua maturidade, chegasse onde chegou. Quanto à sua pergunta, respondo: Não, os deuses não eram assexuados. Todos eles dispunham das condições necessárias para a cópula. Ocorre que, sublimes e transcendentes e divinos e celestiais e etéreos e purpurínicos e exosféricos, não lhes apetecia o contato físico com as filhas de Athenas. Lá, no Olimpo, só havia a troca de, por assim dizer, “sensações” com uma ou outra Deusa. Há, como é sabido, uma narração detalhada de uma destas
trocas de, por assim dizer, sensações com Ísis (uma espécie de Vandinha da
Grécia Antiga), mas não gosto de comentar a vida dos outros. De novo, repito: os
Deus eram sexuados. Quanto ao Dr. Darwin, citado em sua pergunta, saiba que a
batata dele tá assando. Pouco me importa quem envernizou as baratas, eu quero é
a sobra de verniz para dar uma mão na porta do banheiro lá de casa.

[Pergunta formulada por Anthony Burgess, escritor britânico, autor de Laranja Mecânica e Poderes Terrenos, entre diversos outros títulos] Dra. Dhanada, como a senhora sabe, sou autor da Teoria da Escala-Sangue-do-Meu-Sangue, onde demonstro os diversos graus galgados na prática do incesto. A escala aponta 5 níveis de incesto: Nível 1: sexo com a mãe/pai; nível 2: Sexo com irmãos/irmãs, Nível 3: sexo com tios/tias; nível 4: sexo com primos/primas em primeiro e segundo graus; nível 5: sexo com qualquer pessoa, já que todos somos irmãos perante-a-deus. A Teoria da Escala-Sangue-do-Meu-Sangue foi certificada há 5 anos, e – sim, é ciúme! – o Cem Fins Lucrativos não publicou nem mesmo uma nota de rodapé sobre o tema. Pergunto: Teve ou não teve jabá nisso tudo? Mr. Burgges, li Enderby por Dentro, li Poderes Terremos, li A Última Missão, li As últimas Notícias do Mundo, li Qualquer Ferro Velho, li O Pequeno Wilson e o Grande Deus, mas eu jamais soube de publicação sua acerca da Teoria da Escala-Sangue-do-Meu-Sangue. Nem nunca soube que a mesma tenha sido certificada pelo Comitê Certificador de Teorias Catastróficas-CCTC. Mas se o senhor está dizendo... Olha a faca!! Quanto à sua pergunta, digo-lhe que na mesma vara (sic) cível em que eu der entrada (sic) em ação contra o senhor Darwin hei de incluir vossa senhoria. Saiba o senhor que foi com espírito altruísta e comovedoramente sem fins lucrativos que o Editor do Cem Fins Lucrativos colocou à disposição sua ampla penetração (sic) em todas (sic) as escalas sociais para que a Teoria da Escala-Crística se fizesse conhecida e divulgada e propalada e pulverizada e notificada e fofocada. Devo reconhecer: Homem é Tudo Igual. Ide procurar Vandinha enquanto cata coquinho, seu Púria! Parcela Ínfima do Nada Absoluto!
Santinho de Cartomante Jogado ao Vento! Poeira Cósmica Rondando Saturno! Líquido Amniótico do Parto de Saddan! Sêmen de Polução! Resíduo das Sobras das Quebras dos Restos! Compilação de Piadas de Português! Paralelepípedo da Baixa dos Sapateiros! Orelhão Vandalizado da Telemar! Raio da Roda Traseira da Monarck de Paulinho! Processador do 286 Onde Tudo Começou! Perseguição Mentirosa em 007 (vá ver o filme e confira)!, Programação do SBT! Guardanapo do Motel Queen (Ah, gente, tem dó!)! Isca de Pescar Pacu! Mensagem de Erro do Windows 98! Pichações Sem Sentido Na Comercial Norte! Fita do Senhor do Bonfim Depois de Três Meses de Uso! Primeiras Edições de Sabrina e Bianca! Resíduo do Espirro do Meu Primo Sandro! Basta.

[Pergunta formulada pelo Editor do Blog Cem Fins Lucrativos que, segundo ele, está no primeiro degrau da Escala-Crística] Dra. Cristina, diz-se que os suínos têm orgasmos que duram até 30 minutos. Tenho, inclusive, um amigo que divulga, por e-mail, um arquivo em power point para toda humanidade contendo informações acerca do tema. A lista de pessoas que, via ele, já receberam tal e-mail – e que já o encaminharam pra listas ultra-gigantes –, é ultra-gigante. Diniz, é o nome da impoluta figura. Pergunto: Em que fase da Escala-Crísticas estão os Controladores de Vôos? Ou estou voando? Caro Editor, ignorando totalmente sua pergunta e o comentaria suíno, peço-lhe que publique, o mais rápido possível, nosso artigo Evidenciando o Evidente: É Isso Mesmo e Pronto!, a fim de que todos possam conhecer a Verdade, que a todos Libertará do Jugo pesado da Plena Ignorância. E, a propósito, parabéns pela passagem de anos (sic), capricorniano!.