29 de março de 2007

As Rosas Não Falam

Para Aninha


Nem todo mundo nasce com a bunda pra lua. Alguns, para ganhar a vida, têm de ralar. E muito. Outros, o dinheiro parece que brota no fundo do quintal, ou mesmo em outros quintais, pouco importa. Muitos, para existir – e tão somente para existir – desdobram-se, multiplicam-se. Felizmente, não é só o dinheiro que dá alegria. Ajuda, é bem verdade. Mas há muita gente endinheirada infeliz, e eu tenho amigos que são cobradores de ônibus e vivem sorrindo. Pedro é uma dessas pessoas. Vive do salário de caixa nas Lojas Americanas e das aulas particulares de dança de salão. E é feliz. Nas Americanas, por pior que fosse o salário, ele não via a hora de ir pro trabalho. Gostava dos colegas de trabalho. Havia entre eles uma silenciosa cumplicidade. Tinham o hábito de reparar nas roupas e no biotipo dos clientes. Riam das gordas, se fossem gordas em demasia; riam das magras, se magras além do aceitável. Riam dos cabelos, dos sapatos. Riam de tudo. Por dentro, claro. Além disso, havia o hábito de avaliar os hábitos de cada cliente pelas compras. Aprenderam a deduzir o tamanho das famílias pelas compras. Enfim, eram especialistas no comportamento econômico dos clientes. E eram capazes de traçar o perfil de qualquer um deles a partir das compras e da regularidade com que compravam. A única incógnita ainda existente era um sujeito que ia toda semana só pra comprar um tablete de Chocolate Meio Amargo da Nestlé. Um mistério insolúvel.

Entrava às 08 na loja, saia às 17:30. À noite, de segunda a quinta, estava comprometido com suas pupilas: Arlete Cintra, Helena Navarro, Pâmela Valente, Ana Márcia, Delania, Júlia Salles, Maria Auxiliadora e Daniela Paiva. Eram duas aulas por noite. A primeira aula das 19:30 às 21:00 e a segunda das 21:30 às 23:00. Na segunda, Arlete e Helena; na terça, Pámela e Ana Márcia; na quarta, Delania e Júlia; na quinta, Dora e Dani. A sexta estava reservada para curtição, que ninguém é de ferro.

Arlete Cintra é gerente geral da Loja em que trabalha. Foi ela quem lhe disse que tinha uma amiga que estava querendo aprender dança de salão, mas, tímida, queria que fossem aulas particulares. Pedro não sabia que iria se apaixonar por sua aluna. Helena, a primeira vez que ele foi à sua casa para a aula inaugural, arrumou os móveis de tal modo que houvesse espaço para os movimentos. Pouca luz, para dar um clima tipo dançante (se é que tal clima pode existir). Pedro trazia consigo um estojo contendo o CD com a seleção de músicas apropriadas. Quando ela abriu a porta, ali pelas 09:20 daquela segunda-feira, ele pode sentir seu perfume embriagador penetrando-lhe as narinas. Dolce & Gabbana. E o vestido! Que lindo vestido! E que abertura tinha! Entrou, meio desconcertado, meio ousado... Ela também sem jeito. Eles se sentaram e ela lhe serviu um suco de laranja. Ele explicou-lhe seu método de ensino e deu as dicas de praxe.

Posso usar seu aparelho de som? Claro. Meu repertório é só de músicas antigas, coisas que meu pai cantava. Boleros, tangos, valsas, sambas, e por ai vai... Por mim, tudo bem. Podemos começar?

Bate outra vez, com esperanças o meu
coração...

Postura. A mão, sempre nessa altura. Deixe o braço paralelo com seu corpo...
isso!
Assim? Exato.

Pois já vai terminando o verão em
mim...

Helena estava triplamente constrangida. Nunca recebia homens em sua casa, muito menos um estranho. E aquele estranho estava muito próximo... próximo o suficiente para tocar seu corpo... e tocava seu corpo com um sensualidade que só a dança propicia. Você está tensa? Um pouco. É só no início. Espero... Veja só, os comandos de mudança de movimentos são dados pela minha mão esquerda, ok? Ok. Ponha a sua mão esquerda no meu ombro ... isso... um pouco
mais afastada do pescoço... exato... sinta a música...

Volto ao jardim, com a
certeza que devo
chorar...

Pedro já tinha experiência suficiente para saber quem tinha ou não futuro na dança. Era-lhe bastante olhar para suas pretensas alunas para deduzir quanto de trabalho elas lhe dariam. Duas de suas alunas eram duras como um poste. E, para alguns casos, só há uma solução: esquecer. Helena, felizmente, tinha um gingado que prometia... Você não vai falar dois pra lá e dois pra cá? Perguntou Helena, tentando parecer cômica e para diminuir a tensão. Nessa música, não... De início, a gente vai no “um pra lá, um pra cá”... procure não olhar para os pés... quando
eu der o sinal, gire, ok?
Ok. Agora. Foi mal... Não tem problema... veja só: quando eu tiro o pé, você já arrasta o seu para o mesmo lugar... assim... tire o pé... isso... novamente... isso... agora, faça isso sem olhar para baixo...

Pois bem sei que não queres voltar para
mim...


Helena estava com o misto de tensão e alegria. A aprovação de Pedro a deixava orgulhosa de si mesma. Agradava-lhe a idéia, na dança, de ser conduzida, de ser a parte frágil. Na vida, no trabalho e nas suas relações, era ela quem dava as cartas, ela quem dirigia, ela quem liderava. Ali, dentro sua própria casa, subordinava-se ao comando daquele estranho... Você é leve, facilita nos movimentos... opa, não pode olhar para baixo... isso... girando... um... dois.... três... agora... isso... beleza!! Ela jurara a si mesma que não passaria dos 52 quilos. Foi bom ouvir de Pedro que ela era leve...

Queixo-me às rosas, mas que bobagem! As rosas não
falam...

Se você preferir tirar o sapato, tudo bem... Prefiro. [Aquele scarpin
era novo, e ela não tinha band-aid]. Que alívio! Vamos lá? Vamos. Nesse ritmo, procure rebolar menos, ok? Deixe que seu corpo sinuosamente seja conduzido... mantenha os ombros firmes e a cintura à vontade...

Aquela referência ao seu rebolado deixou-a constrangida. Era como se... como se ele estivesse atento aos seus movimentos... sentiu-se de certo modo invadida... , levemente invadida, além disso, havia um quê de discreta repreensão, coisa com a qual ela não estava acostumada.

Simplesmente, as rosas exalam o perfume que roubam
de ti!

Quer tomar alguma coisa?, perguntou Helena. Sim, mais suco de laranja. Só um minuto.

Pedro não pode deixar de observar, quando ela se dirigia à cozinha, seu rebolado.
Ela voltou, dizendo que estava com uma leve dor de cabeça. Ele entendeu o recado. Segunda-feira então? Sim, mas não estou lhe mandando embora... Eu sei. Fique um pouco mais... nós mal começamos a aula... A primeira aula é sempre atípica. É mais pra gente se conhecer. Mas prepare-se para suar na próxima aula. Tudo bem.

Devias vir, para ver os meus olhos tristonhos, e
quem sabe sonhavas meus sonhos, por fim...

Na quarta-aula, foi impossível evitar aquele beijo. Viraram namorados. Etc. Três meses depois, estavam de férias em Florianópolis. Ele lhe dera um vestido lindo – mas por demais decotado – para uma festa dançante em Floripa... lilás... vestido que ela não usou. O frio cortante daquele junho era totalmente impeditivo...

Eram felizes, até certo ponto. Algo, no entanto, a incomodava. Ele só tinha alunas. E elas ligavam. E ele ia em suas casas. E dançava com elas. E tocava em seus corpos. E elas, aquelas sirigaitas, com certeza deviam insinuar-se! Com certeza ele, que não é santo, devia aproveita-se da situação. Lástima. Sozinho na casa delas, dançando com elas, corpo a corpo, rosto a rosto, mão na cintura. Homem não presta!

Suas noites eram um inferno. Chegava do escritório. Tomava seu banho. E ficava pensando em tudo que podia estar acontecendo. Em Arlete ela confiava, afinal de contas, eram amigas. Mas e essa tal de Pámela, que mandava recados para Pedro, chamando-o de Pierre? E essa tal de Ana Márcia, que só tinha 17? E a tal da Júlia, que ele dizia ser uma coroa turbinada? E a megera da Auxiliadora, que ele chamava de poste mas dizia que era bonita de rosto? E a tal da Delania, loirinha de cabelos lisos e mais magra que ela? E a tal da Daniela, mulata que sabia sambar mas que queria se aperfeiçoar? Pra completar, cada uma morava nos extremos da cidade. E para piorar, ele desligava o celular durante as aulas. Diz que é um profissional. Profissional... E que suas clientes merecem respeito. Estão pagando pelo serviço. Respeito. Respeito uma pinóia! Bando de vagabundas. Tudo piriguete!

Até que numa fatídica madrugada de sábado, toca o celular de Pedro, que estava dormindo. Ela o chama. Ele atende, sonolento. Era Ana Márcia, 17. Pelas respostas monossilábicas dele ela deduziu que a ligação não era gratuita. Pelo seu constrangimento, ela deduziu que estava estabelecido um conflito entre seus quase 29 (ela fará aniversário na quinta-feira, dois dias depois) e os 17 da cachorra da Ana Márcia. Virou para o lado, de costas para Pedro. Silenciou-se, engolindo a dor daquelas evidências. E chorou. Silenciosamente. Ele tentou abraçá-la, mas ela retirou-se seu braço. Ele sabia que nessas horas, tudo que ele dissesse seria usado contra ele. Acomodou-se no seu canto. Ali estavam os dois, acordados, juntos na penumbra daquele quarto. "Separados por léguas e léguas de distância".

18 de março de 2007

Eu e Luiz


Para Karina Yuri Ogawa




Dois meses. Foi desesperadora a certeza da gravidez. Ela tinha suspeitas,
afinal de contas, nunca havia atrasado tanto. Mas agora, tendo às mãos o
resultado dos exames, o mundo desabava, feito placas de gelo gigantes de um
monumental iceberg. Aos 18 anos, Vânia não podia acreditar que era seu nome que
estava naquele resultado de exame, em negrito (arial narrow 11). Um tumulto de
pensamentos se atropelavam na rua estreita de sua jovem, tumultuada cabeça. Na
clínica, fora de si, quis falar com o médico, Dr. Heráclito. Aguarde um
instante, diz a assistente.

Dois meses. Seu filho já tinha dois meses. A realidade tinha dois meses. Dr. Heráclito, homem experimentado, lera nos olhos de Vânia todo o desespero. Quis dizer algo consolador, mas nunca soube lidar com emoções. Se soubesse, teria sido psicólogo e não clínico. Mas apertou
sua mão e disse-lhe que era uma vida que ela carregava no ventre, uma vida que
merecia todo seu amor, e que deveria ser recebida como uma bênção. Disse isso,
mas queria dizer outras coisas. Queria arrancar daqueles olhos vidrados a
angústia, o peso.

Ainda garotinha, 10, 12 anos, Vânia brincava com
as amigas, dizendo que, quando se casasse, seu filho se chamaria Luiz Henrique.
Hoje, naquela linda manhã de sol em Brasília, ela só via nuvens escuras e
trovoadas, e raios e um céu sem teto. Luiz Henrique tinha dois meses e ela não
tinha a menor idéia de como iria apresentá-lo a seus pais. Aliás, ela não tinha
idéia de nada. A rua estreita de sua cabeça ainda estava com um tremendo
engarrafamento. Ponto de Ônibus da 116 Norte.

Foi no carnaval de
Olinda que ela conhecera, três meses antes, Maurício. Em meio à multidão de
foliões, aquele rosto lhe chamara a atenção. Um quê de enigmática timidez se
entrevia nos olhos daquele estranho. Maurício era funcionário dos Correios em
Recife. Sempre preferiu o carnaval mais ameno de Olinda. Gente boa, Maurício.
Jogava seu futebol. Bebia sua cerveja. Tinha lá seus casos, mas a titular mesmo
era Carlinha. Carlinha, evangélica, jamais ia a carnavais. “Tá amarrado!” Ela
até pensou em proibir Maurício de ir, mas Maurício às vezes é muito opinioso e
não gosta de ser mandado por mulher. Esta parte da história, só muito tarde
Vânia viria a conhecer, muito mais tarde.

Vânia estava apaixonada
por alguém absolutamente estranho: o pai de Luiz Henrique. Luiz Henrique, esse
outro alguém-por-vir, era-lhe completamente desconhecido, mas, ironicamente, era
ela mesma, desdobrada, multiplicada, ampliada, extensa, enriquecida. Era ela
mesma, inevitável, real, viva.

Maurício, aquele estranho, que
revolvera suas entranhas, que envolvera sua alma, que lhe prometera amor eterno,
que lhe dera mais atenção que qualquer um poderia ter dado, que a chamava de
princesa, que lhe disse ao ouvidos aquelas palavras encantadas e lindas e
fabulosas e mágicas e... suculentas, que lhe despira com um certo ardor, mas com
uma pressa que ela desejou tivesse sido talvez um pouco mais romântica, um pouco
mais encantada, fabulosa, mágica, lentamente suculenta. Estava amarrada.

Naquela madrugada, no vôo de retorno a Brasília, levava nos olhos
o rosto de Maurício; no coração, algemas; no ventre, Luiz Henrique. Luiz era
filho daquelas palavras mais... suculentas.

Na parada de ônibus,
tinha medo de tocar naquele papel, áspero papel. Tinha medo de pensar no futuro,
áspero futuro. Enquanto chorava, pensava em como daria a notícia em casa.
Lembrou-se de Bruna, sua tia solteirona, irmã de seu pai. Tia Bruna vai me
compreender. Ligou pelo celular. Caixa de mensagens.

Em trinta
minutos ela estará em casa. Mas se eu pudesse voltar atrás e refizesse o meu
passado! Maldito olhar! Maldita enigmática timidez! Malditas palavras
suculentas! Em trinta minutos, em casa. Pai só chega à noite. Mãe está em casa.
Mas se o motorista fosse misericordioso, levá-la-ia para longe, muito longe. Lá
onde não houvesse pensamentos, nem placas gigantes de icebegs caindo lenta e
drasticamente.

Assusta-se com a frenagem brusca do ônibus.
Taguatinga-Sul (Via Católica). É meu ônibus. Entra. Sobe devagar, está
transportando Luiz Henrique. Há tanta tranqüilidade no rosto dessas pessoas
sentadas e agarradas no ferro do ônibus! Bando de insensíveis! Será que não vêem
que quero ajuda e que estou desesperada? Será que algum cavalheiro vai lhe dar
lugar? Afinal de contas, ela está grávida. Custa ser gentil? Um senhor lhe cede
o lugar. Lera seus pensamentos. Agradece. Senta-se. Vânia esboça justificativas
para sua mãe. Pensa no drama que fará seu pai. “Grávida! Como assim, Vânia?
Grávida de quem, Vânia, se você nem namorado tem?!”
. Pensa nas respostas que
dará. “Minha filha, tanto que eu te pedi para não ir para Recife! Tanto que eu
te falei para não ir, Vânia! Vânia, quem é o pai desse menino, Vânia? Pelo amor
de Deus, Vânia!”
Pensa em sua mãe intervindo: “Calma, amor, calma!” “Calma como,
Aninha? Calma como?”. “A menina tá chorando, Amor!”


Era verdade,
seu pai não queria que ela fosse, muito menos com as meninas, Soninha e Talita.
Talita é louca; Soninha, maluca. Pensa em todos os comentários e em todos os
depoimentos e em todas as pessoas curiosas.

Ouve o barulho das
águas do oceano a cada queda de cada placa de cada gigante iceberg. Maurício não
tem celular, não gosta de ser controlado, monitorado. Maurício é muito opinioso,
e não gosta de usar preservativo. Tinha lá suas razões. Maurício é saudável. O
pai de Luiz Henrique conhece Recife inteira, entrega cartas. ECT. Farda amarela.
Talvez ele também entregue resultados de exames. Quantas placas gigantes afundam
lentamente a cada instante? Em quinze minutos, estaremos em casa. Nós dois.
Eu... e Luiz.

16 de março de 2007

Lembra de Mim

Para Beatriz Brüehmüeller



Helena sabia que a turma do escritório não deixaria passar em branco seu aniversário de 29 anos. Flávia, sua assistente – e confidente para assuntos inconfessáveis – deixara transparecer que havia uma surpresa sendo arquitetada. Por isso, pela certeza de uma pequena festa em sua homenagem – e ainda porque merecia, ora essa! –, agendou uma escovinha para as 09:00 horas e escolheu seu vestido lilás – presente que Pedro lhe dera quando do passeio que fizeram juntos a Florianópolis e que ela não usou porque, no frio daquele junho, era impraticável aquele decote. Escovinha, brincos afro e a sandália preta de salto agulha e adereços lilases. E um colar solitário. A única inconveniência era dirigir. Aquela sandália teimava em ficar no intervalo entre o acelerador e o freio. Resolve dirigir descalça. Melhor assim. Garagem do prédio onde trabalha. Elevador. Décimo terceiro andar. Sala oito. Departamento de Marketing. Não sabe contabilizar quantos elogios recebeu desde que estacionou até sentar-se em sua mesa. Só Pedro não estava lá para vê-la. E me olhar com aquele olhar de quem me despe. Lástima. “Amiga! U-lá-lá!”. É Flávia, carregando um buquê de flores. Presente do Pedro. Os colegas do departamento deixam transparecer que não querem transparecer que estão a postos para irem à sala de reuniões, onde Flávia já organizou a festa hipoteticamente surpresa. “Minha filha, só porque é seu aniversário, tinha que atrasar três horas? O chefe tá uma arara contigo. Ele está na sala de reuniões e quer todo o material da campanha de final de ano. Deixa eu te dar um abraço forte!!”. Ela sabe o que a espera. Dá um tempo para que o pessoal tenha condições de simular naturalidade ao se aglomerar na sala de reuniões e vai para lá com sua pasta da campanha. Abre a porta e é saudada com vivas e aplausos e parabéns e abraços e elogios etc. Abre um sorriso e faz um ar de surpresa nada convincente. Livros e CDs e DVDs. Presentes. Que bom que o Raul teve o bom gosto de presenteá-la com o álbum novo do Ivan Lins – Novo Tempo. “Obrigada, gente!”. Não vê a hora de tirar a sandália, que já tomou as devidas providências para desenvolver dois calos naquele sofrido calcanhar. Termina o dia. Garagem. Pés descalços no trânsito. Garagem do seu prédio. Elevador. Quarto andar. Apartamento 401. Tira a chave da bolsa depois de uma procura de três minutos, enquanto seus pés clamam por um divórcio permanente daquela famigerada sandália. Abre a porta aborrecida. “Porque diabos eu não penduro essa bendita chave no pescoço?”. Entra em casa. Ávida, tira a famigerada sandália. Joga a bolsa no sofá. Senta-se. Mas, imediatamente, lembra-se do Ivan Lins. Adora Ivan Lins. A bolsa. Remove o papel de presente. Remove o plástico do CD. Nada mais irritante que a extrema qualidade da plastificação de CDs no Brasil. Arre!. Liga o aparelho de som. Os primeiros acordes do Ivan – “... daquilo que eu sei, nem tudo me deu clareza...” – fazem-na mudar o semblante. O cansaço foi substituído por um prazer que entra pelos ouvidos e sai pelos olhos, olhos que ela acaba de fechar para melhor beber a melodia. Fome. Cozinha. Geladeira. Olha o iogurte. Olha a cerveja. Pensa. Tudo me é lícito, mas nem tudo me convém. Maçã. Maçã me convém. Lástima. O custo altíssimo da manutenção dos seus 51 quilos. Volta à geladeira. Toma o iogurte. Respinga no vestido. Lástima. “... quero toda sua pouca castidade...”. Quarto. Toalha. Banheiro. Chuveiro. Sabonete em creme Ekos, da Natura. Shampoo Niely Gold Chocolate (Nutre e deixa os cabelos mais fortes,com maciez e brilho). Pensa em Pedro. O que estará fazendo aquele calhorda neste momento? Deixa a água cair em seu corpo. Mais Ekos da Natura. Vontade de dormir bem aqui. Trinta reais numa escovinha. Trinta reais num investimento que acaba de desfazer-se. Condicionador Niely Gold Chocolate. Creme Hidratante idem. “... sua alegria escandalosa...”. Pedro é uma pedra. “... vontade de passar dos seus limites...”. Toalha. Quarto. “... no novo tempo, apesar dos castigos...”. Senta-se na cama. Camisola. As mulheres, no seu quarto, têm gestos mais lentos que aqueles que fazem na sala, na cozinha, no banheiro. É como se o quarto fosse seu tabernáculo. Sua sagrada masmorra. Há uma infinidade de cremes no compartimento lateral do guarda-roupa. Dove. Leite de Colônia. Remover toda a maquiagem, todo aquele moldura para nada. Nada é Pedro, leitor. Segue-se o creme facial. “Oh, Madalena, o que é meu não se divide...”. Lentamente, ela passa o creme A, que será seguido do creme B. Nas mãos, o creme C. No rosto, o creme C também. Há toda uma ciência no uso dos benditos cremes. E o ritual é feito com tal teatralidade e suavidade e singeleza que temos a impressão de que ela tem a impressão de que há uma platéia observando cada movimento. “... o mar é uma gota comparada ao pranto meu...”. Finda a trajetória dermatológica, segue-se a escolha da roupa de amanhã, sexta. Amanhã é sexta-feira. Minha bota marrom, calça jeans, camisete branca, e o casaco de couro marrom (vai que esfria). Fatal. Pedro. Pedro é uma pedra no meu caminho. “... o que é meu não se divide...” Eu não vou ligar. Não ligo. Ele que ligue, se quiser. Cansei de msn. Porcaria. Vinte e nove anos. Mais alguns dias e Flávia me entregará novo buquê. Lástima. Terei trinta anos. Lástima. “... vai valer a pena ter amanhecido... começar de novo...”. Trinta anos. Sem filhos. Eu pago minhas contas. E sou dona do meu nariz. Trinta anos. 51 quilos. A decisão pela calça jeans e adjacências surpreende pela rapidez. Normalmente, a eleição da roupa do dia seguinte supõe que a platéia pagou caro pelo bilhete e quer drama, muito drama. E nada mais dramático que a inquietação de uma mulher que escolhe uma roupa. Tão lindo o buquê! “... com força e com vontade, a felicidade há de se espalhar...” O buquê ficou no escritório. Deixa lá. Sei lá. Talvez ela precise mostrar a todos que está tudo bem, que eles estão bem. Talvez ela precise que ele saiba que ela colocou as rosas num vaso dágua para dar-lhes sobrevida. Deve ser coisa do subconsciente. Sei lá. São quase dez horas e a maçã/iogurte não foi capaz de preenchê-la. Lástima. Iogurte. Se ele sabia, porque não foi me ver? Porcaria de buquê! “Lembra de mim, a gente sempre se casava ao luar...” Senta-se. Chora. Levanta-se. Não vou chorar. Não vou chorar. Ela é dona do seu nariz. Paga suas contas. Na bolsa, o cartão de Pedro, e sua letra bonita, mas ilegível: “Docinho, as rosas não falam. Parabéns! Pedrito". Grande coisa! E daí que as rosas não falam? Isso lá quer dizer alguma coisa? Lástima. “... tão naufragados e exaustos de amar...”. Deixa cair a toalha. Seu imaginário público está enrubescido. Veste a camisola. Docinho... docinho é sua vó! “... se existe um pouco de prazer em sofrer...” Pedro estava na cidade, claro. Mas foi ela quem disse que não queria vê-lo nem pintado de ouro. “...depende de nós...“ Foi ela que o deixou plantado no Praça de Alimentação. Foi ela quem terminou com tudo. “... que faz tudo prum mundo melhor...” Ela tinha seus motivos. Ele tinha justificativas. Ele entendia seus motivos. Mas ela, implacável, não aceita justificativas. “... que o sol descortine mais as manhãs...”. Apaga a luz. Deita-se. “... se devoravam com a sede dos presídios...” Não pode dormir antes de desligar as luzes. E precisa pegar a bolsa. Reler o cartão de Pedro. Quem sabe haja uma mensagem subliminar ilegível?!. Quem sabe uma marca dágua?! Pega o cartão. A bolsa – repositório de mais coisas que porão da família Adams –, aberta, deixa entrever o celular. Naquele instante, ela se lembra de tê-lo colocado no vibra call durante a reunião. Havia 17 chamadas e uma mensagem de texto. O número: 071-9177-2889. Claro que era o número do Pedro, leitor! Do Bento 16 é que não podia ser, né?!. 17 chamadas. Lástima. A mensagem de texto: “Docinho, te pego às 11:30? Estou te ligando desde meio-dia. Me perdoa, vai! Pedrito”. “... vieste com beijos silvestres colhidos para mim...” Cachorro! Mas ele não tinha culpa, ora essa! Foi ela quem fez a burrada. Ele mandou flores, ligou diversas vezes, mandou mensagem. E ela, feito besta, imaginando coisas. “...Fique certa, quando o nosso amor desperta, logo o sol se desespera, e se esconde lá na serra. Oh, Madalena”. Pedro é notívago e acha que todo mundo o é. Lástima. Molhei o cabelo. Só falta ele querer que eu inaugure o vestido lilás manchado. Esboça um sorriso. Alegria de vê-lo. É 13 de janeiro. 23 horas. Noite de quinta-feira. Mas o sol estava brilhando como nunca jamais brilhara.

5 de março de 2007

Amontoando Brasas

Para mim


Neila é minha testemunha. E cúmplice. Naquela noite fria, ela deveria cumprir um ritual pelo qual eu mesmo havia passado: andar sobre brasas. Por minha insistência, ela aceitou o desafio de fazer um curso de imersão na Chapada dos Guimarães. Três dias vivenciando experiências nunca dantes vividas. Quarenta pessoas aceitaram a proposta de, sob a orientação de uma equipe de profissionais de programação neuro-linguísticas, darem uma boa mexida em suas vidas, exterminando medos, exorcizando fantasmas, expelindo traumas, tratando neuroses. Ciúmes, medos, inquietações, tudo no lixo. Naquela noite, Neila deveria andar em brasas. Desde o início da tarde, uma grande fogueira foi feita na parte externa do ambiente do treinamento. Em algumas horas, brasas "incandescentes" brilhavam na noite, dando arrepios naqueles que sabiam a finalidade de sua existência. Em torno das 20:00 horas, todos foram convidados a assistir à construção de uma passarela de brasas. Um metro de largura por cerca de 10 de cumprimento. Aparentemente, uma estrada curta. Um caminho fácil de trilhar. Um percurso diminuto para um ser-humano. Só aparentemente. O instrutor, claro, dava instruções. Um série de mentalizações e sugestões, se absorvidas, dariam aos pés uma miraculosa proteção, tornando-os imunes às brasas. Todos se reuniram em torno à passarela. No frio daquela noite, as brasas eram um convite para se aquecer. Neila, dias antes, quando lhe disse de minha experiência, foi clara: “Nem morta que eu ando em brasa!! Cê ta ficando é besta!”. E disse mais um bando de coisas relativas à minha suposta demência e à natureza doentia de quem se predispõe a coisas do gênero. Naquela noite, no entanto, ela estava decidida a atravessar, “viva”. Depois de tudo que passara e ouvira e sentira durante o curso, andar em brasas era tão difícil quanto tomar sorvete na Sorveteria Alaska, ou passear de saia rosa na Alzira Santana, ou ver o nascer-do-sol no parque Mãe Bonifácia, ou ir comigo todos os sábados num lugar cujas paredes externas eram pintadas com imagens que eram nitidamente bundas gigantes. Ou seja, era fichinha andar em brasas. Ela e nenhuma daquelas pessoas até aquele momento havia passado por experiência equivalente. Terminada a construção da passarela-brasil, o instrutor, para incentivo de seus instruídos, abre o desfile com sua equipe. Cada um dobra a barra das calças até o joelho, ou a saia até acima dos joelhos. Todos, impávidos e indomáveis, olhos vidrados nas estrelas, pisando com firmeza em sem qualquer vestígio de medo ou dor, atravessaram a passarela. Do outro lado, terminada a travessia, gritos de “yes”, com o luxuoso e característico movimento firme do braço (punhos fechados). Estava aberto o caminho para os demais. Neila, para minha surpresa, estava convicta e firme. Iria atravessar. Eu, no entanto, estava com medo por ela, embora já tivesse passado pela experiência com sucesso, tendo também gritado umas tantas vezes o mesmo “yes”. Temia que ela se machucasse. Temia que ela temesse. Temia que aqueles pés, maravilhosos pés, fossem danificados por uma daquelas brasas maldosas. Oh!. Os alunos se enfileiraram para a travessia. Familiares com suas máquinas fotográficas a postos. Começa o desfile. Pessoas que nunca vi, mas com as quais me irmanava naquele momento, davam gritos de vitória logo após a travessia. Do outro lado, eram recebidos por aqueles que já haviam atravessado. Muita vibração, acalorados abraços, gritos de alegria. Aquelas pessoas estavam ali para vencerem seus medos. E o desafio de atravessar um caminho de brasas era algo que lhes dava uma sensação estranha de invencibilidade, de poder, de imponderável satisfação. Chegara a vez de Neila, e eu não sabia perguntar ao meu corpo se aqueles tremores eram de medo ou de frio. Resoluta, ela caminhou decidida e firmemente sobre as brasas. Cada passo dado, uma vitória. A cada passo, uma nova mulher se formava. Podia jurar que Simone faria a trilha sonora: “que venha essa nova mulher, de dentro de mim...”. Acompanhei cada passo daquele. No meu campo de visão, cada movimento demorava uma eternidade. Em segundos, no entanto, vejo-a dar o último passo. Exultante e em lágrimas, ela grita: “yes!”. Dou-lhe um abraço, mas ela não se contém. Não se basta. Dá pulos. Grita. “Yes!”. Nem mesmo calor sentira. Naquela noite, não dormimos. O Hotel dispunha de um ofurô. Lá ficamos. Sós, naquela madrugada. Amontoando brasas, outras brasas. Yes!!.