27 de fevereiro de 2009

25 de fevereiro de 2009

O Amor é Cego

Ontem (penúltimo dia de carnaval), por absoluta pressão de uma figura do meu círculo, fui assistir, em DVD, O Amor é Cego, uma comédia conhecidíssima. Na verdade, eu já havia assistido na TV, há já algum tempo, e fui rever. Óbvio que o filme continua o mesmo, mas eu mudei muito desde a primeira vez que assisti (muito provavelmente para pior, já que, desta feita, eu não dei nenhuma rizadinha sequer). O filme, para quem na viu, fala de uma cara que, hipnotizado, começa a ver as pessoas muito melhor do que elas são realmente (do ponto de vista estético). A namorada dele, que ele vê como uma beldade, é uma garota muito feia e muito gorda (muito gorda mesmo). O enredo vai apontar para a necessidade de se conhecer o interior das pessoas etc. Mas o filme acabou me remetendo a uma outra filosofia, aquela que está lá no finalzinho do filme A Vida de Brian, segundo filme do Monty Python, que mostra uma sátira anárquica sobre a visão de Hollywood em relação a todos os temas bíblicos e religião, tendo como centro da história, claro, Brian Cohen. Esse sim, se o vejo novamente, não contenho as gargalhadas (prova de que eu não estou tão involuído assim). No filme, ex-leprosos, Pôncio Pilatos, profetas malucos, centuriões romanos e atos de crucificação. É muito engraçado. Pois bem, lá no finalzinho do filme, a mensagem é: Olhe sempre o lado bom da vida!” Os crucificados, em coro, cantam e assoviam a música. “Você vem do nada, vai pro nada. Que é que você vai perder? Nada”. É esta parte do filme que aponta para a mesma ética do filme O Amor é Cego (guardadas todas as proporções entre uma produção e outra, claro). Bobby Mcferry, com a canção Don´t worry, be happy, seguindo a mesma linha, aconselha: “Não preocupe, seja feliz!”. Pois é: o pessoal da física quântica, o pessoal da PNL (programação neuro linguística), Paulo Coelho, e uma dezena de filosofias orientais têm como base de sua estrutura a idéia de a) que você, com seu pensamento e com suas atitudes, pode alterar a realidade ao seu redor; b) que seu modelo de pensamento determina seu futuro; c) que o traçado que você dá á sua vida, se ele for perseguido diligentemente, é um alvo tão fácil quanto tentar acertar o chão com uma flecha (não dá pra errar o chão); d) que a existência reflete seus pensamentos e conspira para que as coisas aconteçam conforme seus objetivos (quaisquer que sejam eles, bons ou ruins). A filosofia ocidental, cuja base é a razão, não vê "racionalidade" nisso, e a própria ciência idem. Mas uma coisa é certa, há uma infinidade de experiências pessoais relatadas demonstrando que o pensamento (associado evidentemente a um conjunto de atitudes) mudo o rumo das coisas. Não se trata de ilusão ou engano, como pretende mostrar a comédia O Amor é cego, nem se trata de enxergar as coisas com outro ângulo, como quer A Vida de Brian, nem é uma atitude um tanto quanto inconseqüente apontada em Don´t Worry, Be Happy (em que pese sua mensagem de elevação). Trata-se de, realmente, transformar a realidade - especialmente e especificamente a sua realidade. Se eu acredito nisso? Claro.

Pois é, abaixo, Bobby Mcferry, com Don´t Worry, Be Happy. Se quiser, veja também o clip, clicando aqui.



Here's a little song I wrote
Aqui está uma cançãozinha que eu escrevi
You might want to sing it note for note
Você pode querer cantá-la nota por nota
Don't worry, be happy
Não se preocupe, fique feliz
In every life we have some trouble
Em cada vida nós temos alguns problemas
But when you worry you make it double
Mas quando você se preocupa você os duplica
Don't worry, be happy
Não se preocupe, fique feliz
Don't worry, be happy now
Não se preocupe, fique feliz agora
Don't worry, be happy.
Não se preocupe, seja feliz. (4x)
Ain't got no place to lay your head
Não tem lugar para colocar sua cabeça
Somebody came and took your bed
Alguém veio e tirou sua cama
Don't worry, be happy
Não se preocupe, fique feliz
The landlord say your rent is late
O proprietário disse que seu aluguel está atrasado
He may have to litigate
Ele pode ter que processar
Don't worry, be happy
Não se preocupe, fique feliz
Don't worry, be happy.
Não se preocupe, seja feliz. (4x)
Look at me, I'm happy.
Olhe para mim, eu estou feliz.
Don't worry, be happy
Não se preocupe, fique feliz
Here I give you my phone number.
Aqui, eu te dou me telefone.
When you worry, call me,
Quando se preocupar, me ligue
I make you happy. Don't worry, be happy
Eu faço você feliz. Não se preocupe, seja feliz
Ain't got no cash, ain't got no style
Não tem dinheiro, não tem estilo
Ain't got no gal to make you smile
E não tem nenhuma garota para lhe fazer sorrir
Don't worry, be happy
Não se preocupe, fique feliz
'Cause when you worry
Porque quando você se preocupa
Your face will frown
Seu rosto fica carrancudo
And that will bring everybody down
E isto deixará todo mundo triste
Don't worry, be happy
Não se preocupe, seja feliz
Don't worry, be happy.
Não se preocupe, seja feliz. (4x)
Don't worry, don't worry, don't do it
Não se preocupe, não faça isso
Be happy. Put a smile on your face
fique feliz. Coloque um sorriso no rosto
Don't bring everybody down
Não deixe todo mundo triste
Don't worry.
Não se preocupe.
It will soon pass, whatever it is
Isto logo passará, não importa o que for
Don't worry, be happy
Não se preocupe, seja feliz
I'm not worried, I'm happy
Eu não estou preocupado, eu estou feliz

23 de fevereiro de 2009

Honrar la vida - Mercedes Sosa

Meu primeiro contato com Mercedes Sosa foi ali pelos 10 anos, quando Milton Nascimento gravou com ela Volver a Los 17, de Violeta Parra. Veja lá o disco Geraes, de 1976. Trata-se de um álbum que tem um trenzinho passando próximo a montanhas. Evidentemente, Minas Gerais. O segundo contato foi bem mais tarde, em Brasília. Paulo e Alexandre, primos de Silvana e meus amigos, tinham uma infinidade de vinis raros e muitos CDs (que eram uma novidade tecnológica por aqueles tempos). Lá, pude ouvir Mercedes cantando Sina, de Djavan. Mas a canção que ficou gravada pelo valor ético (ou moral, se preferirem) foi Honrar la Vida. Letra e música seguem abaixo.



Honrar la Vida
Eladia Blázquez

Nó...! Permanecer y transcurrirno
no es es perdurar, no es existir,
ni honrar la vida!
Hay tantas maneras de no ser
tanta conciencia sin saber,
adormecida...
Merecer la vida, no es callar y consentir
tantas injusticias repetidas...
Es una virtud, es dignidady
es la actitud de identidadmás difinida!
Eso de durar y transcurrir
no nos dá derecho a presumir,
porque no es lo mismo que vivir
honrar la vida!

Nó...! Permanecer y transcurrir
no siempre quiere sugerir
honrar la vida!
Hay tanta pequeña vanidad
en nuestra tonta humanidad
enceguecida.
Merecer la vida es erguirse vertical
más allá del mal, de las caídas...
Es igual que darle a la verdady
a nuestra propia libertad
la bienvenida!
Eso de durar y transcurrir
no nos da derecho a presumir
porque no es lo mismo que vivir
honrar la vida!

Filosofia Contemporânea V




A impressão que se tem, quando se houve Retiros Espirituais (do disco Gil Luminoso), é a de que Gil está na sala de sua casa e que a gravação foi feita sem qualquer aparato. Intimista, rústica, caseiro, pessoal, muito pessoal. Tomei a liberdade de colar, abaixo, os comentários de Gil acerca da música, comentários muito próprios dele. Dado que a letra desemboca nos mistérios da existência, ei-la que figura como V post filosófico. A letra vai logo abaixo. Se a canção demorar, é que demora mesmo.

"Retiros Espirituais lança um olhar singelo, simplório, sobre a questão filosófica do ser e não ser; sobre o paradoxo do princípio da incerteza, do que é e não é. É uma das minhas músicas sobre o wu wei, a ação-não-ação, a idéia de superação e alcance do ser, onde tudo é; sobre o fato de que o pensamento consciente, sob a égide da volição, ainda é o que se chamaria o estágio zen, o satori, o samadhi, o sat ananda indiano, onde arqueiro, arco e alvo se confundem e sujeito, ato e objeto são uma só coisa.

"Talvez seja a minha obra-prima nesse sentido, porque a mais engenhosa do ponto de vista poemático; uma letra que transcende ao aspecto comum da letra de música, na verdade um poema musicado. No trato da sua criação, os versos não serviram apenas para preencher os vazios das caixas das frases sonoras. Quando eu sentei para escrever, eu já escrevi com o sentimento do poema, como se já houvesse algo sendo dito e o frasear fosse apenas uma explicação do que estava sendo dito. Como uma nuvem que fosse um poema cujos versos fossem a chuva: a chuva é depois da nuvem, dissolução em gotas, fragmentação do 'denso-condenso' que é a nuvem: assim eram os versos em relação ao poema e vice-versa.

"Eu estava sozinho na sala de jantar, uma hora da manhã, a família já recolhida, tendo ido dormir, após uma daquelas noites que eu tinha passado com todos sentado defronte a televisão vendo o jornal e a novela, e quis buscar e revelar através da escrita, numa espécie de poema-espírito, poema-situação, o que era estar ali diante do mistério da solidão, na meditação, no compartilhar do silêncio que substituía o ruído da vida, da casa, na madrugada, com a sua capacidade de assepcia, de filtragem do que tinha sido o dia. E a canção foi sendo feita, letra e música juntas.

"É uma das músicas minhas que mais prezo, por ser das primeiras que dão uma radiografia da minha subjetividade e visceralidade interior, álmica. E é dividida em três partes para apresentar o movimento de tese-antítese-síntese de que gosto muito."


Retiros Espirituais

Nos meus retiros espirituais descubro certas coisas tão normais
Como estar defronte de uma coisa e ficar
Horas à fio com ela, bárbara, bela, tela de TV
Você há de achar gozado Barbarela dita assim dessa maneira
Brincadeira sem nexo que gente maluca gosta de fazer

Eu diria mais tudo não passa dos espirituais sinais iniciais desta canção
Retirar tudo o que eu disse, reticenciar que eu juro
Censurar ninguém se atreve
É tão bom sonhar contigo, oh, luar tão cândido

Nos meus retiros espirituais descubro certas coisas anormais
Como alguns instantes vacilantes e só
Só com você e comigo, pouco faltando, devendo chegar
Um momento novo, vento devastando como um sonho
Sobre a destruição de tudo, que gente maluca gosta de sonhar

Eu diria sonhar com você jaz nos espirituais sinais iniciais desta canção
Retirar tudo o que eu disse, reticenciar que eu juro
Censurar ninguém se atreve
É tão bom sonhar contigo, oh, luar tão cândido

Nos meus retiros espirituais, descubro certas coisas tão banais
Como ter problemas, ser o mesmo que não
Resolver tê-los é ter, resolver ignorá-los é ter
Você há de achar gozado ter que resolver de ambos os lados
Da minha equação, que gente maluca tem que resolver

Eu diria o problema se reduz aos espirituais sinais iniciais desta canção
Retirar tudo o que eu disse, reticenciar que eu juro
Censurar ninguém se atreve
É tão bom sonhar contigo, oh, luar tão cândido

Filosofia Contemporânea IV



Nestes tempos de carnaval, vale a pena lembrar de Sei lá, Mangueira, de Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho. A canção é muito bonita, mas o que realmente aponta para o metafísico são os versos "A vida não é só isso que se vê, é um pouco mais". Abaixo, na interpretação de Andrea Pinheiro e o grupo Galo Preto, a jóia.

Sei lá, Mangueira

Vista assim do alto
Mais parece um céu no chão
Sei lá,
Em Mangueira a poesia, feito um mar, se alastrou
E a beleza do lugar, pra se entender
Tem que se achar
Que a vida não é só isso que se vê
É um pouco mais
Que os olhos não conseguem perceber
E as mãos não ousam tocar
E os pés recusam pisar
Sei lá não sei... Sei lá não sei...
Não sei se toda beleza de que lhes falo
Sai tão somente do meu coração
Em Mangueira a poesia
Num sobe e desce constante
Anda descalça ensinando
Um modo novo da gente viver
De sonhar, de pensar e sofrer
Sei lá não sei, sei lá não sei não
A Mangueira é tão grande
Que nem cabe explicação

Eu não lhe prometi um mar de rosas

Ele me disse que graduar-se em filosofia sempre foi um sonho, dado que, desde criança, gostava de espantar-se. Tudo para ele era motivo de “Oh!”. Até mesmo na adolescência, quando a gente já não se espanta com tanta facilidade, ele sempre se assombrava com as coisas mais banais, tipo: a irrepetibilidade dos arrebóis, a influência das fases lunares no ofício de cabeleireiro, a “influência má dos signos do zodíaco”, etc. De modo que, pra ele, cursar filosofia significaria dedicar-se – integralmente – ao exercício do mais puro espantamento, que as aulas todas seriam overdoses de pasmos, espasmos, espantos, estupefações, assombros, admirações, frissons, estarrecimentos e pavores e temores e tremores. Qual nada! O que o deixa espantado mesmo é o elenco de livros indicados nas ementas. Não bastasse a bibliografia básica, vem ainda a complementar (que tende a ser maior que a outra). E tem a bendita lógica! E tem ainda os infinitos fragmentos a serem interpretados! E tem a irritante dúvida metódica! E tem a ilegibilidade do prefácio da Fenomenologia do Espírito! E as teogonias! E as cosmogonias! Pra ele (não vou declinar o nome porque este jornal prima pelo respeito às suas fontes), bastava que a grade curricular constasse de Metafísica e Filosofia da Linguagem. Pronto. A receita dele é simples: a gente mete as caras no Ser e o descreve. Simples. Ele crê que todas as disciplinas, exceto aquelas duas, estão trafegando nos arredores, nas cercanias, nas beiradas, na periferia do Ser. Indo direto ao ponto, ganha-se tempo e chega-se logo à Verdade (sim: moral, lógica e ontológica). Do contrário, é-se um Ser s(e)m Tempo. Ele (não vou declinar o nome!) esperava mais do curso de filosofia. E teme virar um cético dogmático. Teme perder o pendor, a vocação para espanto.

20 de fevereiro de 2009

15 de fevereiro de 2009

Maior Amor De Todos

Pra quem, como eu, era ardoroso espectador do Raul Gil, sempre foi interessante ouvir, dos calouros mais famosos, a múltiplas interpretações de The Greatest Love Of All, famosa na voz de Whitney Houston, mas que eu prefiro na voz de George Benson, esse rapaz à sua esquerda. Trata-se de uma melodia que dispensa comentários (vide abaixo podcast, aqui colocado por obra, graça, engenho e arte de Devana Babu). Mas a letra é de uma grandeza que vai na mesma medida da melodia: belíssima!

Ouça a canção enquanto lê a poesia.




Maior Amor De Todos
Michael Masser e Linda Creed

Eu acredito que as crianças são o nosso futuro.
Ensina-as bem e deixe que sigam seus caminhos.
Mostrem toda a beleza interior que possuem.
Dê-lhes um bom exemplo para encontrá-la.
Deixemos que o sorriso das crianças
nos lembre de como a gente era.

Todo mundo procura por um herói.
As pessoas precisam de alguém para se espelharem.
Eu nunca encontrei ninguém para me ajudar
e, sim, um distante lugar
onde aprendi a contar comigo mesmo.

Eu decidi há algum tempo atrás
nunca mais nas sombras de ninguém andar.
Se eu caio ou se levanto,
ao menos, vivo como eu acredito.
Não importa o que tirem de mim,
a minha dignidade não vai ter fim.

Porque o maior amor de todos aconteceu para mim.
Eu encontrei o maior amor de todos dentro de mim.
O maior amor de todos é fácil de achar.
Aprenda a amar a si mesmo, este é o maior amor de todos.

Quando a necessidade de viver, de se encontrar
e os sonhos em realidade se tornar, se aflorar,
o coração será o seu guia e é nele
que você vai aprender cada vez mais a se amar.


Filosofia Contemporânea III

Se o teu coração
amasse o meu coração
como eu meu coração
ama o seu coração
seriam dois corações
em um só coração

Filosofia Contemporânea II

Ame quem te ama
E não quem ti sorri
Quem te sorri
te engana
Quem te ama
Sofre por ti

Filosofia Contemporânea

Numa folha qualquer
Eu desenho um sol amarelo
E com cinco ou seis retas
É fácil fazer um castelo...
Corro o lápis em torno
Da mão e me dou uma luva
E, se faço chover,
Com dois riscos
Tenho um guarda-chuva...

Se um pinguinho de tinta
Cai num pedacinho
Azul do papel,
Num instante imagino
Uma linda gaivota
A voar no céu...
Vai voando
Contornando a imensa curva
Norte e Sul
Vou com ela viajando
Havaí, Pequim ou Istambul
Pinto um barco a vela
Branco navegando
É tanto céu e mar
Num beijo azul...

Entre as nuvens
Vem surgindo um lindo
Avião rosa e grená
Tudo em volta colorindo
Com suas luzes a piscar...
Basta imaginar e ele está
Partindo, sereno e lindo
Se a gente quiser
Ele vai pousar...

Numa folha qualquer
Eu desenho um navio
De partida
Com alguns bons amigos
Bebendo de bem com a vida...
De uma América a outra
Eu consigo passar num segundo
Giro um simples compasso
E num círculo eu faço o mundo...

Um menino caminha
E caminhando chega no muro
E ali logo em frente
A esperar pela gente
O futuro está...
E o futuro é uma astronave
Que tentamos pilotar
Não tem tempo, nem piedade
Nem tem hora de chegar
Sem pedir licença
Muda a nossa vida
E depois convida
A rir ou chorar...

Nessa estrada não nos cabe
Conhecer ou ver o que virá
O fim dela ninguém sabe
Bem ao certo onde vai dar
Vamos todos
Numa linda passarela
De uma aquarela
Que um dia enfim
Descolorirá...

10 de fevereiro de 2009

Molambo

Para Luciano Costa

Para ouvir Rosa Passos é preciso cumprir alguns ritos. Do contrário, não se houve, só se escuta. E o rito é simples, mas pode ser muito difícil para muita gente. Primeiro é preciso que num fim de tarde (pode ser num sábado) você não tenha absolutamente nenhum compromisso. Sei que estou falando de algo surreal num mundo de obrigações mil, mas eu disse logo acima que não era tããão fácil. Segundo, é preciso que, pela janela, esteja vindo um vento suficientemente forte para balançar a cortina, mas suficientemente fraco para não se sentir frio. Sei que estou falando de algum surreal, em se falando de cidades como a nossa, Salvador, ou como a do poeta Manoel Lacerda Lima, Cuiabá, ou como a do Devana, Brasília, mas eu disse logo acima que não era tããão fácil. Terceiro é preciso que haja uma cama coberta por uma colcha de retalhos. Isto é fácil, basta que sua mãe use uma máquina Singer, recolha pedaços diversos de retalhos comprados na loja Mundo dos Retalhas na Praça 9 de Novembro e costure. Sei que estou falando de algo surreal, em se falando de um mundo onde colchas, cheniles, fronhas e correlatos são vendidos a migué, mas eu disse logo acima que não era tããão fácil. Quarto - é preciso que você tenha uma caixa de som digna. Quinto - é preciso que, nesse fim de tarde, você esteja absolutamente só. Sei que estou falando de algo surreal, em se falando de pessoas que têm família, amigos, filhos e, claro, 3 ou 4 fantasmas. Mas eu disse logo acima que não era tããão fácil. Pois bem, cumpridos esses requisitos, segue-se o ritual: a) Tome um banho - seria um ato profano ouvir Rosa Passos sem tomar banho, ó Jequietita!; b) Vá lá na estante e busque qualquer obra do pessoal da geração de 45, exceto Raquel de Queiroz e Clarice Lispector. De preferência, José Lins do Rego ou Graciliano; c) Pegue o CD da Rosa Passos, que você deverá ter comprado nas Americanas; d) Execute a canção de número 8 (Molambo). É que, se bem o conheço, você deve achar muito peculiar e muito interessante que alguém dê tal nome a uma canção. A letra da música é a mais clara expressão da franqueza. Considerando que você é um filósofo, Luciano - um dissecador do real e do sublime -, um bando de reflexões poderão ficar a postos na primeira estrofe. Contenha-se. É um conselho inseguível, eu sei. Mas eu disse logo acima que não era tããão fácil. Pois bem, se você resolveu ler Fogo Morto, não deverá passar da página 50. É que, nas condições acima (colcha de retalhos, vento do litoral, solidão, música), você fatalmente vai dormir e acordar ali pelas 20 horas, quando entrarão pela porta adentro duas mãos em cujas palmas haverá um tablete de chocolate meio amargo da Nestlê. Difícil? Mas eu disse logo acima que não era tããão fácil.

4 de fevereiro de 2009

A Fatura

Brasília, 23 de fevereiro de 2029. Escritório de Advocacia.
- Entra, Tio!
Achei estranho o vocativo. É verdade que o Dr. Ezequiel Luiz Farias de Sena, Advogado de causas cíveis, é meu sobrinho. Mas ter sobrinhos já me soava estranho desde os 13 anos, quando nasceu o primogênito de Marlúcia e todos, eu e meus irmãos, nos tornamos precocemente tios. Agora, por conta do fato terrível que relatar não posso, eis-me consultando um advogado que, nesse caso específico, é meu sobrinho - Zequinha.

- Sente-se. Quer um café? - pergunta Zequinha, com a mão no telefone, solícito, a postos, gentil.
- Não, obrigado. Uma água talvez. E seu pai, vai bem? - Pergunto.
- O senhor bem conhece meu pai, Tio; ele está sempre muito além do bem e do mal – responde ele, espirituoso, denunciando, evidentemente, vestígios de sua passagem pelo GEN (Grupo de Estudos Nietzscheanos).

Sentado ali, de frente para Zequinha, enquanto ele arrumava os papéis e livros espalhados pela mesa de mármore e ligava para a secretária para pedir água, tive aqueles segundos suficientes para olhar os livros na estante e voltar algumas dezenas de anos no passado. Um passado que Zequinha não conheceu e que de nada adiantaria conhecer. O homem à minha frente acaba de virar pai. Pai do representante da quarta geração. A saber: José Gonçalves, que nos anos 1930 gerou a Avelino Gonçalves, que nos anos 1960 gerou a Paulo Sena, que nos anos 2000 gerou Ezequiel Sena, que neste ano de 2029 gerou a Antonio Tibúrcio. Antonio recebeu esse nome em homenagem a Antonio Tibúrcio, avô de minha mãe e cuja história integral só ela conhece suficientemente. Antonio Tibúrcio Farias de Sena é só um bebê. Chora, mama, dorme e faz cocô e pipi. Eis o resumo da vida que leva o pequeno Antonio. E parece que essa rotina não difere muito da minha, na altura dos meus 60 anos. Antonio não conhece o passado. E de nada lhe adiantará conhecer. Ali, pois, entre os livros técnicos, estão duas obras cujas lombadas me são familiares: Sangue Coagulado, quarto livro publicado por Devana Babu, irmão mais velho de Zequinha, crítico literário em Brasília; e O Cabo da Tormentas, meu primeiro livro de contos, publicado há 20 anos. A secretária interrompe meus pensamentos com uma bandeja. Vi a bandeja, vi o copo com água. E vi que, muito provavelmente, a mãe do pequeno Antônio deve ser muito condescendente, ou subestima os perigos desta vida.

- Tio, eu li todo o processo e preciso tirar algumas dúvidas com o senhor - Retorna Zequinha, com um aspecto que não era de curiosidade, aquela curiosidade cúmplice; não. Era um técnico que estava ali. Era um técnico - Dr. Ezequiel Luiz Farias de Sena - que precisava de dados, elementos, arestas, indícios para vencer uma causa. E vencer a causa não era necessariamente o que eu mais queria naquele momento. Meu problema era com os efeitos; irreparáveis, irrevogáveis.

- Em 2009, há exatos 20 anos, o senhor...
Ou seja, o passado se me impõe. Imutável e pontual, ele estava ali, à minha frente, e me apresentava a fatura.

1 de fevereiro de 2009

Pessoalmente

"Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como sempre serei. E penso se a minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não encarna a substância de milhares de vozes, a fome de dizerem-se de milhares de vidas, a paciência de milhões de almas submissas como a minha ao destino quotidiano, ao sonho inútil, à esperança sem vestígios. Nestes momentos meu coração pulsa mais alto por minha consciência dele. Vivo mais porque vivo maior."