Não de mim, mas do logos tendo ouvido é sábio homologar tudo é um. HIPÓLITO, Refutação, IX, 9.
27 de janeiro de 2007
“Eu tô sem raiva!”
Tive uma namorada que brigou comigo pelo simples fato de eu não brigar com ela. Dizia que eu era por demais diplomático, que uma breve pitada de ira não fazia mal nenhum. “Você não se irrita?”. Claro que eu me irritava! Claro que havia uma série de coisas que me deixavam emputecido, mas, não sei se por preguiça, se por condescendência, se por alguma nata habilidade para a dissimulação, nunca consegui manifestar – externamente – sentimentos de ira ou de aborrecimento. Evidentemente que eu achava muito inoportunos certos comentários que ela fazia. Evidentemente que eu reprovava aquela mania de ajustar a calcinha em qualquer lugar, e ainda por cima com aquele fatídico barulho: tec!; Evidentemente que eu abominava aquela mania sádica de retirar espinhas em mim com uma crueldade que eu sabia intencional; evidentemente que eu achava o cúmulo que ela vasculhasse meu celular em busca de vestígios de uma outra; evidentemente que eu não concebia que ela tivesse tanto assunto pra trazer à tona exatamente numa sala escura no cinema, principalmente quando o filme era legendado; evidentemente que eu queria morrer quando ela, por motivos que eu nunca saberei, emburrava e entrava num mutismo que só acabava quando eu já estava exausto de perguntar: “o que foi que eu fiz?”; evidentemente que eu me aborrecia quando ela, naqueles momentos em que todo ser humano normal vive o “momento”, vinha com comentários que simplesmente inviabilizava o sucesso do “momento”. Tipo: “Você me ama realmente?”, “Você está pensando em quem?”, “Você está sendo muito brusco”, “Você precisa ser um pouco mais brusco”, “Você me ama?”. Perguntas pertinentes, mas extremamente inoportunas. Evidentemente que eu me irritava. Mas é igualmente evidente que alguma coisa aconteceu lá naquele “momento” de meus pais, que determinou minha concepção, coisa essa que me fez menos iracundo que os humanos normais. Irrito-me pouco e o pouco que me irrito é implícito, é por dentro, é imperceptível. E mesmo quando, aqui dentro, começa a crescer o monstrinho da ira, eu pego meu extintor e detono com ele. Essa coisa da ira me faz lembrar uma história que uma colega, Amanda, me contou, que vos conto. Amanda e Nádia são irmãs gêmeas. Quando garotas, a mãe tinha um pequeno armazém, em Porto Alegre. Ocorre que, na mesma rua, moravam duas irmãs – cujos nomes ignoro (chamemo-las, portanto, de Branca e Neve). Branca e Neve, sempre que faziam alguma compra, lá vinham elas trocar, acusando que a mãe reprovara isso ou aquilo. De modo que aquele troca-troca de produtos começou a irritar Amanda e Nádia. Numa dessas trocas, Nádia, encolerizada, soltou os cachorros em cima de Branca e de Neve; disse-lhes “as do fim”, como diria Luiz Gonzaga. E estendeu suas ofensas à mãe das meninas que, a rigor, era a demandante principal das trocas perpétuas. Branca, a mais velha, ao ver sua mãe traiçoeiramente envolvida na questão, sem que a mesma pudesse defender-se das acusações, desafiou as irmãs Amanda e Nádia, dizendo: “Suas magrelas, sai do balcão! Vem pra rua!” E, para estimular suas rivais, alcançou uma pedra de razoável tamanho e arremessou-a em direção ao balcão de madeira e vidro, atingindo, claro, o vidro. Fora a gota dágua. Amanda e Nádia, impedidas de deixar o balcão, resolveram desafiar Branca e Neve, propondo um duelo a ser travado atrás da igreja matriz. Branca e Neve, ávidas por sangue e morte e dor e escoriações e hematomas e beliscões e puxões de cabelo e ranger de dentes e fraturas, aceitaram, de pronto, a proposta. Agendaram o evento-briga para as 10 da manhã do dia seguinte, ficando acordado, previamente, que só duas voltariam para casa andando – as vivas, claro. Com olhar desafiador e com os cabelos em desalinho e os pés na poeira e trajando seus pijamas de florzinhas, lá se foram as duas garotas resmungando: “Elas vai ver! Elas vai ver”. No dia seguinte, é Nádia quem diz para Amanda: “Vamo?” “Pra onde?” pergunta Amanda. “Pra briga, bestona!”. “Ah! Vamo.” Eram dez horas, e Branca e Neve já estavam lá: mãos nas cinturas, olhar cruel e o infalível pijama. Resoluta, Nádia não deu tempo nem mesmo aos xingamentos de praxe – o prelúdio indispensável a qualquer batalha (vide Mel Gibson), foi logo para cima das irmãs Branca e Neve, batendo e chutando e desferindo golpes sem qualquer técnica: Pof! Paf! Pum! Pam!. As irmãs, pegas de surpresa, reagiram bravamente, derrubando Nádia no chão empoeirado. Pof! Paf! Pum! Pam! Nádia, num momento de rara reflexão, percebera que Amanda estava ali, a uns 15 metros, estática, olhos arregalados. E gritou: “Amanda, vem me ajudar”. Pof! Paf! Pum! Pam! A súplica tinha duas razões básicas: uma, ela estava apanhando feio; duas, Amanda, que lhe constasse, estava escalada para compor as fileiras. “Amanda, vem!” Pof! Paf! Pum! Pam!. “Amaaandaaaa!!!!” Pof! Paf! Pum! Pam! Ao que Amanda, saindo do torpor, respondeu: “Eu tô sem raiva!”. Pof! Paf! Pum! Pam! Pronto, estava explicado. Nádia, diante de resposta tão inesperada ao seu pedido de socorro, não mediu esforços para, em meio à poeira que se levantara, safar-se. Saiu correndo, seguida por Amanda, presumindo essa última que Branca e Neve não a poupariam. Chegaram a casa, onde estavam a salvo das cruéis Branca e Neve. Nádia estava irada, não com suas rivais, não com suas escoriações diversas, mas com sua irmã, a apática Amanda. Amanda, com a consciência esfacelada por ver os destroços de Nádia, numa tentativa vã de justificar-se, repetia, cabisbaixa: “Eu tava sem raiva...”. Nádia, lambendo dolorosamente suas feridas, engolira em seco a deslavada desculpa. Nada disse Nádia. Ela estava com muita, muita raiva.
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3 comentários:
sim... mas o que isso tem a ver comigo mesmo?!?!?!?!?!
Nelson andou falando que eu sou inoportuna?!?!?!? Ou será o fato de eu ter raiva e guardar pra mim, quiçá no máximo colocar no blog????
Silvia, o texto não tem nada a ver com você e com mais ninguém. É só um texto despretensioso. A referência a você é só pelo fato de ser uma leitora assídua. Só. E, claro, porque gosto de você e do Nelson. Abraços, querida!
Que engraçado!! Parece que no inicio estava falando de mim!!Outra coisa, sei que essa Amanda quando garota morou em Porto Alegre, mas...
... nasceu na Bahia??
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