24 de fevereiro de 2007

"... E o Vento Levou"

Para Petrônio

Lá em casa, Supercine e Tela Quente eram programas sagrados. Segunda e sábado, naquele frio que sempre caracterizou Vitória da Conquista, minha cidade, sentávamos, nós oito, num único sofá, cobertos por cobertores de retalhes que mainha fabricava e, silenciosos, assistíamos os filmes. Todos com meias e pijama de bolinha. Lá do quarto, paínho e maínha, que muito cedo iam para cama, autorizavam que varássemos a noite vendo filmes. Mas pediam silêncio. Quem fizesse barulho, era repreendido pelos demais sete. Se os barulhentos fossem Maurício, Fábio ou Minéia, a repreensão vinha acompanhada de um tabefe, já que eram menores. Paulinho, embora fosse o mais velho, por algum motivo misterioso, nunca usou da condição de primogênito para impor autoridade. Nosso clã era meio que acéfalo, embora nós seis voluntariamente nos predispuséssemos – por algum impulso genético – a obedecer a ele e a Marlúcia. Das três, uma: ou ele precocemente adotava um regime democrático, ou éramos por demais civilizadamente dóceis ou ele era besta mesmo e não aproveitou a ocasião para imperar como Idi Amim Dada. Estou aprofundando uma análise sociológica sobre o tema. Tão logo esteja pronto, divulgo. Pois bem. Nossa TV de 20 polegadas, instalada ali na estante – altar-mor e santuário perpétuo - era um convite à contrição e ao silêncio reverente. Nos intervalos dos filmes, íamos comer pão e vitamina de abacate (A Cine Ceia), dois produtos que abundavam em casa. Um, porque meu pai era Padeiro, outro, porque tínhamos cinco pés de abacate no quintal (vide Abacate). Tão logo ouvíamos o plin plin, corríamos para o sofá. A guerra era ficar no meio, aquecidos. Quem ficava nas pontas tinha 50% de perda no que toca ao aquecimento natural. Claro que estar no meio tinha lá alguns inconvenientes se se considerar que Petrônio tinha uma especialidade biológica que não ouso dizer aqui, mas que causava certo mal estar, principalmente àqueles mais adjacentes. O referido mal-estar, se previamente anunciado, podia causar menos prejuízo, mas Petrônio nunca profetizava. Fazer o quê?. O certo é que a concentração era essencial. Todos tinham que estar atentos a cada movimento. E todos tinham que ficar atentos aos detalhes para não ficar perguntando isso ou aquilo. Claro que Fábio e Maurício e Minéia não entendiam tudo, afinal eram menos informados e menos inteligentes que nós, “os mais velhos”. Havia, e há, certa cumplicidade e, mesmo, certa solidariedade nisso. Se alguém demorava a vir, gritávamos: “Já começou, vem logo!”. Juntos, assistimos à maioria dos clássicos do cinema. “... E o vento levou”. Cerca de três horas! Imaginem vocês!. “Doutor Jivago”, “A Noviça Rebelde”; “Os Embalos de Sábado à Noite”, “Nos Tempos da Brilhantina”, “Bem Hur”, “Moisés”, “Um Estranho no Ninho”, “Kramer versus Kramer”, "Planeta dos Macacos", etc, etc. Tempos atrás, quando morávamos em Brasília e já éramos grandinhos, ia passar um filmaço no sábado à noite. Todos os preparativos foram feitos para que os que ali estavam se organizassem. Havia um desfalque, já que Paulinho casara-se com Valci – prometo falar disso em outra ocasião – e Marlúcia casara-se com Nilton Santana – prometo idem. Agora, restavam: Fábio, Maurício, Minéia, eu, Petrônio e Márcia. Petrônio, com o tempo, evoluíra muito na sua especialidade. Fábio, Maurício e Minéia já tinham maior compreensão das coisas. Ocorre que Fábio, pouco antes de começar o filme, vai para o banheiro com o Volume II dos Ensaios do Montagne (publicados em três volumes pela Editora da UNB), contrariando a Liturgia de Leitura no Banheiro (vide Exortações Sanitárias). E lá ficara até que o filme começou. Preocupado com um possível atraso (e de ter que contar o início do filme ao retardatário do Fábio), gritei: "Fábio, já tá começaaaaaando!". Ele, de lá, remete a pérola: “Daqui dá pra ouvir, depois vocês me contam as imagens”.

Um comentário:

Anônimo disse...

Bons tempos, Luiz Cláudio, quando a "Vênus Prateada" magnificava seu poder hipnótico com filmes de qualidade! "Tela Quente" e "Telecine" já tiveram dias gloriosos. Hoje, um dos poucos momentos felizes que o "Plim-Plim" ainda nos proporciona - pelo menos para quem é notívago - é a madrugada, com o "Intercine" e o "Corujão". É uma pena: a maioria das emissoras abertas, com uma honrosa exceção ("Sessão das Duas", da TV Brasília/Rede TV), não tem critério de seletividade. Muitas vezes, não existe alternativa à profusão de produtos "kitsch" e "trash" despejada pela indústria cultural. Era possível reunir a família sem sobressaltos (por exemplo, cenas apelativas de banalização da violência). É um verdadeiro desserviço ao espectador médio (aquele que não tem condições de pagar uma tv a cabo ou locar VHS ou DVD), fadado a não desenvolver seu padrão estético.
Evoé!
Daniel
(Contente pelo fim do famigerado horário de verão)
PS: Ao listar e reconhecer "Os Embalos de Sábado à Noite" como clássico, fiquei exultante. Grande filme, com roteiro tipicamente "evoélico" (gostaram do neologismo, Nelson e “Anônimo”?!): a música pulsante da discoteca, John Travolta em estado de graça, o enredo interessante (um jovem trabalhador alienado, com limitada educação, que compensa suas restrições socioeconômicas em noites catárticas, se apercebe capaz de uma perspectiva de vida além de suas imanências), fazem, entre outros aspectos, de "Saturday Night Fever" um achado cinematográfico...