Para mim
Neila é minha testemunha. E cúmplice. Naquela noite fria, ela deveria cumprir um ritual pelo qual eu mesmo havia passado: andar sobre brasas. Por minha insistência, ela aceitou o desafio de fazer um curso de imersão na Chapada dos Guimarães. Três dias vivenciando experiências nunca dantes vividas. Quarenta pessoas aceitaram a proposta de, sob a orientação de uma equipe de profissionais de programação neuro-linguísticas, darem uma boa mexida em suas vidas, exterminando medos, exorcizando fantasmas, expelindo traumas, tratando neuroses. Ciúmes, medos, inquietações, tudo no lixo. Naquela noite, Neila deveria andar em brasas. Desde o início da tarde, uma grande fogueira foi feita na parte externa do ambiente do treinamento. Em algumas horas, brasas "incandescentes" brilhavam na noite, dando arrepios naqueles que sabiam a finalidade de sua existência. Em torno das 20:00 horas, todos foram convidados a assistir à construção de uma passarela de brasas. Um metro de largura por cerca de 10 de cumprimento. Aparentemente, uma estrada curta. Um caminho fácil de trilhar. Um percurso diminuto para um ser-humano. Só aparentemente. O instrutor, claro, dava instruções. Um série de mentalizações e sugestões, se absorvidas, dariam aos pés uma miraculosa proteção, tornando-os imunes às brasas. Todos se reuniram em torno à passarela. No frio daquela noite, as brasas eram um convite para se aquecer. Neila, dias antes, quando lhe disse de minha experiência, foi clara: “Nem morta que eu ando em brasa!! Cê ta ficando é besta!”. E disse mais um bando de coisas relativas à minha suposta demência e à natureza doentia de quem se predispõe a coisas do gênero. Naquela noite, no entanto, ela estava decidida a atravessar, “viva”. Depois de tudo que passara e ouvira e sentira durante o curso, andar em brasas era tão difícil quanto tomar sorvete na Sorveteria Alaska, ou passear de saia rosa na Alzira Santana, ou ver o nascer-do-sol no parque Mãe Bonifácia, ou ir comigo todos os sábados num lugar cujas paredes externas eram pintadas com imagens que eram nitidamente bundas gigantes. Ou seja, era fichinha andar em brasas. Ela e nenhuma daquelas pessoas até aquele momento havia passado por experiência equivalente. Terminada a construção da passarela-brasil, o instrutor, para incentivo de seus instruídos, abre o desfile com sua equipe. Cada um dobra a barra das calças até o joelho, ou a saia até acima dos joelhos. Todos, impávidos e indomáveis, olhos vidrados nas estrelas, pisando com firmeza em sem qualquer vestígio de medo ou dor, atravessaram a passarela. Do outro lado, terminada a travessia, gritos de “yes”, com o luxuoso e característico movimento firme do braço (punhos fechados). Estava aberto o caminho para os demais. Neila, para minha surpresa, estava convicta e firme. Iria atravessar. Eu, no entanto, estava com medo por ela, embora já tivesse passado pela experiência com sucesso, tendo também gritado umas tantas vezes o mesmo “yes”. Temia que ela se machucasse. Temia que ela temesse. Temia que aqueles pés, maravilhosos pés, fossem danificados por uma daquelas brasas maldosas. Oh!. Os alunos se enfileiraram para a travessia. Familiares com suas máquinas fotográficas a postos. Começa o desfile. Pessoas que nunca vi, mas com as quais me irmanava naquele momento, davam gritos de vitória logo após a travessia. Do outro lado, eram recebidos por aqueles que já haviam atravessado. Muita vibração, acalorados abraços, gritos de alegria. Aquelas pessoas estavam ali para vencerem seus medos. E o desafio de atravessar um caminho de brasas era algo que lhes dava uma sensação estranha de invencibilidade, de poder, de imponderável satisfação. Chegara a vez de Neila, e eu não sabia perguntar ao meu corpo se aqueles tremores eram de medo ou de frio. Resoluta, ela caminhou decidida e firmemente sobre as brasas. Cada passo dado, uma vitória. A cada passo, uma nova mulher se formava. Podia jurar que Simone faria a trilha sonora: “que venha essa nova mulher, de dentro de mim...”. Acompanhei cada passo daquele. No meu campo de visão, cada movimento demorava uma eternidade. Em segundos, no entanto, vejo-a dar o último passo. Exultante e em lágrimas, ela grita: “yes!”. Dou-lhe um abraço, mas ela não se contém. Não se basta. Dá pulos. Grita. “Yes!”. Nem mesmo calor sentira. Naquela noite, não dormimos. O Hotel dispunha de um ofurô. Lá ficamos. Sós, naquela madrugada. Amontoando brasas, outras brasas. Yes!!.
Um comentário:
Aconteceu algo muito semelhente comigo...Não seria isso plágio?
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