Nem todo mundo nasce com a bunda pra lua. Alguns, para ganhar a vida, têm de ralar. E muito. Outros, o dinheiro parece que brota no fundo do quintal, ou mesmo em outros quintais, pouco importa. Muitos, para existir – e tão somente para existir – desdobram-se, multiplicam-se. Felizmente, não é só o dinheiro que dá alegria. Ajuda, é bem verdade. Mas há muita gente endinheirada infeliz, e eu tenho amigos que são cobradores de ônibus e vivem sorrindo. Pedro é uma dessas pessoas. Vive do salário de caixa nas Lojas Americanas e das aulas particulares de dança de salão. E é feliz. Nas Americanas, por pior que fosse o salário, ele não via a hora de ir pro trabalho. Gostava dos colegas de trabalho. Havia entre eles uma silenciosa cumplicidade. Tinham o hábito de reparar nas roupas e no biotipo dos clientes. Riam das gordas, se fossem gordas em demasia; riam das magras, se magras além do aceitável. Riam dos cabelos, dos sapatos. Riam de tudo. Por dentro, claro. Além disso, havia o hábito de avaliar os hábitos de cada cliente pelas compras. Aprenderam a deduzir o tamanho das famílias pelas compras. Enfim, eram especialistas no comportamento econômico dos clientes. E eram capazes de traçar o perfil de qualquer um deles a partir das compras e da regularidade com que compravam. A única incógnita ainda existente era um sujeito que ia toda semana só pra comprar um tablete de Chocolate Meio Amargo da Nestlé. Um mistério insolúvel.
Entrava às 08 na loja, saia às 17:30. À noite, de segunda a quinta, estava comprometido com suas pupilas: Arlete Cintra, Helena Navarro, Pâmela Valente, Ana Márcia, Delania, Júlia Salles, Maria Auxiliadora e Daniela Paiva. Eram duas aulas por noite. A primeira aula das 19:30 às 21:00 e a segunda das 21:30 às 23:00. Na segunda, Arlete e Helena; na terça, Pámela e Ana Márcia; na quarta, Delania e Júlia; na quinta, Dora e Dani. A sexta estava reservada para curtição, que ninguém é de ferro.
Arlete Cintra é gerente geral da Loja em que trabalha. Foi ela quem lhe disse que tinha uma amiga que estava querendo aprender dança de salão, mas, tímida, queria que fossem aulas particulares. Pedro não sabia que iria se apaixonar por sua aluna. Helena, a primeira vez que ele foi à sua casa para a aula inaugural, arrumou os móveis de tal modo que houvesse espaço para os movimentos. Pouca luz, para dar um clima tipo dançante (se é que tal clima pode existir). Pedro trazia consigo um estojo contendo o CD com a seleção de músicas apropriadas. Quando ela abriu a porta, ali pelas 09:20 daquela segunda-feira, ele pode sentir seu perfume embriagador penetrando-lhe as narinas. Dolce & Gabbana. E o vestido! Que lindo vestido! E que abertura tinha! Entrou, meio desconcertado, meio ousado... Ela também sem jeito. Eles se sentaram e ela lhe serviu um suco de laranja. Ele explicou-lhe seu método de ensino e deu as dicas de praxe.
Posso usar seu aparelho de som? Claro. Meu repertório é só de músicas antigas, coisas que meu pai cantava. Boleros, tangos, valsas, sambas, e por ai vai... Por mim, tudo bem. Podemos começar?
Bate outra vez, com esperanças o meu
coração...
Postura. A mão, sempre nessa altura. Deixe o braço paralelo com seu corpo...
isso! Assim? Exato.
Pois já vai terminando o verão em
mim...
Helena estava triplamente constrangida. Nunca recebia homens em sua casa, muito menos um estranho. E aquele estranho estava muito próximo... próximo o suficiente para tocar seu corpo... e tocava seu corpo com um sensualidade que só a dança propicia. Você está tensa? Um pouco. É só no início. Espero... Veja só, os comandos de mudança de movimentos são dados pela minha mão esquerda, ok? Ok. Ponha a sua mão esquerda no meu ombro ... isso... um pouco
mais afastada do pescoço... exato... sinta a música...
Volto ao jardim, com a
certeza que devo
chorar...
Pedro já tinha experiência suficiente para saber quem tinha ou não futuro na dança. Era-lhe bastante olhar para suas pretensas alunas para deduzir quanto de trabalho elas lhe dariam. Duas de suas alunas eram duras como um poste. E, para alguns casos, só há uma solução: esquecer. Helena, felizmente, tinha um gingado que prometia... Você não vai falar dois pra lá e dois pra cá? Perguntou Helena, tentando parecer cômica e para diminuir a tensão. Nessa música, não... De início, a gente vai no “um pra lá, um pra cá”... procure não olhar para os pés... quando
eu der o sinal, gire, ok? Ok. Agora. Foi mal... Não tem problema... veja só: quando eu tiro o pé, você já arrasta o seu para o mesmo lugar... assim... tire o pé... isso... novamente... isso... agora, faça isso sem olhar para baixo...
Pois bem sei que não queres voltar para
mim...
Helena estava com o misto de tensão e alegria. A aprovação de Pedro a deixava orgulhosa de si mesma. Agradava-lhe a idéia, na dança, de ser conduzida, de ser a parte frágil. Na vida, no trabalho e nas suas relações, era ela quem dava as cartas, ela quem dirigia, ela quem liderava. Ali, dentro sua própria casa, subordinava-se ao comando daquele estranho... Você é leve, facilita nos movimentos... opa, não pode olhar para baixo... isso... girando... um... dois.... três... agora... isso... beleza!! Ela jurara a si mesma que não passaria dos 52 quilos. Foi bom ouvir de Pedro que ela era leve...
Queixo-me às rosas, mas que bobagem! As rosas não
falam...
Se você preferir tirar o sapato, tudo bem... Prefiro. [Aquele scarpin
era novo, e ela não tinha band-aid]. Que alívio! Vamos lá? Vamos. Nesse ritmo, procure rebolar menos, ok? Deixe que seu corpo sinuosamente seja conduzido... mantenha os ombros firmes e a cintura à vontade...
Aquela referência ao seu rebolado deixou-a constrangida. Era como se... como se ele estivesse atento aos seus movimentos... sentiu-se de certo modo invadida... , levemente invadida, além disso, havia um quê de discreta repreensão, coisa com a qual ela não estava acostumada.
Simplesmente, as rosas exalam o perfume que roubam
de ti!
Quer tomar alguma coisa?, perguntou Helena. Sim, mais suco de laranja. Só um minuto.
Pedro não pode deixar de observar, quando ela se dirigia à cozinha, seu rebolado.
Ela voltou, dizendo que estava com uma leve dor de cabeça. Ele entendeu o recado. Segunda-feira então? Sim, mas não estou lhe mandando embora... Eu sei. Fique um pouco mais... nós mal começamos a aula... A primeira aula é sempre atípica. É mais pra gente se conhecer. Mas prepare-se para suar na próxima aula. Tudo bem.
Devias vir, para ver os meus olhos tristonhos, e
quem sabe sonhavas meus sonhos, por fim...
Na quarta-aula, foi impossível evitar aquele beijo. Viraram namorados. Etc. Três meses depois, estavam de férias em Florianópolis. Ele lhe dera um vestido lindo – mas por demais decotado – para uma festa dançante em Floripa... lilás... vestido que ela não usou. O frio cortante daquele junho era totalmente impeditivo...
Eram felizes, até certo ponto. Algo, no entanto, a incomodava. Ele só tinha alunas. E elas ligavam. E ele ia em suas casas. E dançava com elas. E tocava em seus corpos. E elas, aquelas sirigaitas, com certeza deviam insinuar-se! Com certeza ele, que não é santo, devia aproveita-se da situação. Lástima. Sozinho na casa delas, dançando com elas, corpo a corpo, rosto a rosto, mão na cintura. Homem não presta!
Suas noites eram um inferno. Chegava do escritório. Tomava seu banho. E ficava pensando em tudo que podia estar acontecendo. Em Arlete ela confiava, afinal de contas, eram amigas. Mas e essa tal de Pámela, que mandava recados para Pedro, chamando-o de Pierre? E essa tal de Ana Márcia, que só tinha 17? E a tal da Júlia, que ele dizia ser uma coroa turbinada? E a megera da Auxiliadora, que ele chamava de poste mas dizia que era bonita de rosto? E a tal da Delania, loirinha de cabelos lisos e mais magra que ela? E a tal da Daniela, mulata que sabia sambar mas que queria se aperfeiçoar? Pra completar, cada uma morava nos extremos da cidade. E para piorar, ele desligava o celular durante as aulas. Diz que é um profissional. Profissional... E que suas clientes merecem respeito. Estão pagando pelo serviço. Respeito. Respeito uma pinóia! Bando de vagabundas. Tudo piriguete!
Até que numa fatídica madrugada de sábado, toca o celular de Pedro, que estava dormindo. Ela o chama. Ele atende, sonolento. Era Ana Márcia, 17. Pelas respostas monossilábicas dele ela deduziu que a ligação não era gratuita. Pelo seu constrangimento, ela deduziu que estava estabelecido um conflito entre seus quase 29 (ela fará aniversário na quinta-feira, dois dias depois) e os 17 da cachorra da Ana Márcia. Virou para o lado, de costas para Pedro. Silenciou-se, engolindo a dor daquelas evidências. E chorou. Silenciosamente. Ele tentou abraçá-la, mas ela retirou-se seu braço. Ele sabia que nessas horas, tudo que ele dissesse seria usado contra ele. Acomodou-se no seu canto. Ali estavam os dois, acordados, juntos na penumbra daquele quarto. "Separados por léguas e léguas de distância".
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