Para Nietzsche
As vezes – e são muitas essas vezes – acho ridículo o modo como nos comportamos. E acho ridículas muitas coisas que falo e penso e faço. Abunda na humanidade um bando de coisas ridículas. Tudo bem que há muita coisa que é maravilhosa. E são inúmeras as coisas maravilhosas que faço e penso e falo. Queiram vocês ou não. Para cada coisa ridícula que faço posso apontar outra que seja grandiosa ou, no mínimo, nobre. Querem exemplos? Pois bem. Todas as vezes que eu e Thereza estamos na praia, levanto algum tema polêmico sobre a existência, sobre razões e fins ou qualquer aspecto em defesa da metafísica. Isso é ridículo. Por acaso, praia é lugar de filosofar!? Convenhamos. Por outro lado, leio com ela os romances do Graciliano. Isto é nobre. E não me venham com esse papo de que, no fundo, no fundo, é puro egoísmo. É nobre e pronto.
Não sei dizer se sou mais ridículo que nobre, ou mais nobre que ridículo. Eis uma contabilidade difícil. Vou dar 50% pra cada lado. Thereza dirá que essa contabilidade é ridícula e que até mesmo escrever sobre isso é ridículo. Nesse caso, acho que o percentual aumenta pro lado do ridículo. Ou seja, sou mais ridículo do que deveria ou poderia. Mas – eis uma coisa nobre – admito que sou ridículo. Ridículo seria não admitir a própria ridicularidade. Nesse caso, agora que entendo como nobre o gesto de reconhecer que sou ridículo, o percentual aumenta para o lado da nobreza. Empate.
Fica a pergunta: sou relativamente nobre ou relativamente ridículo. Essa pergunta é ridícula, eu sei. Logo, sou relativamente ridículo. Reconheço. Mas, se reconheço que – fazendo essa pergunta ridícula – sou nobre, deixo de ser relativamente ridículo para ser relativamente nobre. Vão dizer: mas isso é mesma coisa! Não é, não. Se digo que sou relativamente ridículo, o que pesa na mente do ouvinte (ledinte) é a palavra ridículo. Se digo que sou relativamente nobre, nobre é a palavra que fica na mente de quem ouve (lê). Bem sei que, no fundo, se é relativo, pende igualmente para ambos os lados. Mas isso é relativo. E ridículo.
Pois vou contar um caso para vocês. Caso esse que contei para Thereza. Ela achou ridículo, mas pode ser que não seja.
Sempre que vamos ao shopping (qualquer shopping), uma força misteriosa (gravitacionalmente misteriosa) nos conduz para a livraria (qualquer livraria). Eu, para ler coisas ridículas, avaliar a arte gráfica das capas, a escolha das fontes e apreciar os títulos (dar título a um livro é tarefa árdua). Ela, Thereza, para ler as fofocas de todas as revistas semanais (o que tem lá seu grau de ridicularidade). No último final de semana, por acaso, deparamo-nos, na Siciliano (é que eles tem um café expresso muito expressivo), com o stand dos mais lidos. Homens são de Marte, Mulheres são de Vênus, Homens Fazem Sexo, Mulheres Fazem Amor. Coisas do gênero. Thereza sabia que não me calaria diante de títulos como esses. E já foi logo dizendo: “Pode falar. Eu sei que sua língua tá coçando”. Todas as minhas mulheres me acham previsível. Thereza já lê meus pensamentos. De modo que isso me poupa de falar muito. Tem coisa mais ridícula do que ser previsível? Mas ela não perde por esperar! Qualquer dia desses vou ficar nu lá na Estação da Central da Lapa e quero ver se ela vai dizer que já esperava por isso. Tem coisa mais ridícula e imprevisível que um sujeito nu na Estação da Lapa, ali pelas 18:30h? Não tem.
Lá vou eu, com minha infalível e ridícula previsibilidade, contar pra ela o fato verídico e ridículo. Foi assim, Thereza: Eu estava no Setor Comercial Sul, em Brasília, indo pro trabalho. Eram cerca de 13:30h, eu já havia almoçado e ia pro escritório. Como todos sabem, o Setor Comercial virou um camelódromo. Lá, vende-se de tudo, inclusive livros velhos, que era o produto que me levara ao local. Ali, entre livros velhos, manuseando aquele armazém ambulante de ácaros de todas as espécies, vi que todo mundo, menos eu, estava olhando para uma cena ridícula. Um policial conduzia uma mulher que se escabelava, fora de si, e que xingava encolerizada uma outra mulher. Essa outra, conduzida por outro policial, também se escabelava, também estava fora de si, e respondia aos xingamento da primeira. Logo atrás, conduzido por um terceiro policial, vinha um sujeito magricela, que andava normalmente, embora a roupa estivesse em desalinho e o cabelo idem. O detalhe – o mais safado dos detalhes – é que o Magricela em Desalinho trazia, num canto recôndito da boca (indisfarçável como o sorriso da Monalisa), um rizinho safado, entende? Uma espécie de discreta alegria. Um quê de vaidade. Uma demonstração ridícula de que estava gostando, aquele verme.
Momentos antes – conforme relato dramático de um engraxate –, ele, o Magricela em Desalinho, tentou, inutilmente, apartar as duas mulheres, que se engalfinhavam. Uma, sua mulher. A outra, sua amante.
Sua mulher fora informada – por um anônimo – que ele, o Magricela em Desalinho, naquela manhã, naquela hora, naquele local, iria se encontrar com a outra. Não deu outra. Ela, a titular, já tinha alguns indícios que davam como líquido e certo o adultério, mas ela – como boa devota de São Thomé – só se conformaria se visse, com seus próprios olhos, seu homem com a outra. Não deu outra. Após certificar-se que aqueles dois eram quem pensava – momento em que um misto de ira e dor se apoderou de sua alma – segurou com firmeza a alça de sua bolsa (que deveria estar pesada, como convém às bolsas em geral), girou-a no ar uma vez, duas, direcionando-a para sua rival, indo, por fim, atingir a região logo acima da bunda. Antes que tal região fosse atingida, quando a bolsa ainda se dirigia à região suprabundar, o Magricela em Desalinho pode acompanhar, com seu olhar desesperador, a bolsa em seu movimento inevitável rumo às costas da outra. Não deu outra. Pela cara de dor que fez o engraxate ao relatar esse trecho do episódio, pude deduzir que – naquela região – se formaria um hematoma de tamanho médio. Mas a coisa não parou por ai não, Thereza. A bolsa – agora autônoma - não se continha em si de euforia e satisfação, atingindo regiões nunca dantes atingidas, gerando hematomas de tamanho GG. A bolsa autônoma poderia ser vista, em sua ira bolsífera, por sobre as cabeças dos transeuntes. Sincronicamente, a esposa se referia à amante com adjetivos inefáveis. Um deles – só para exemplificar, Thereza – era “vagabunda”. Os demais iam daí pra pior; muito pior. Mas seria ridículo reproduzi-los numa livraria. Você bem sabe com sou discreto, Thereza.
O Magricelo em Desalinho, diante de tal situação, tentou conter a ira mortal de sua esposa e a aplacar a fúria incansável da bolsa; ao mesmo tempo, súplice, rogava à sua amante que evacuasse do local, rápido como quem furta, a fim de evitar um óbito ou coisa menor. Essa, por sua vez, defendia-se das bolsadas e respondia aos xingamentos da amante com outros de igual teor. O Magricela em Desalinho, em face de batalha tão sangrenta, viu-se incapaz de pacificar as combatentes. Quero acreditar, Thereza, que ele deve ter filosofado, de si para si: “Por Zeus, antes uma em paz que duas em conflito”. Todo pensamento profundo nasce de situações de conflito. Essa frase é minha, Thereza.
Por esse tempo, os expectadores já se aglomeravam em torno do Trio Parada Dura, ora incentivando a esposa, ora vaiando o Magricela em Desalinho, ora desqualificando a moral da outra, que lhes apontava o “maior de todos”, num gesto que seria ridículo, se não fosse obsceno.
O relato do engraxate estava me deixando preocupado com meu horário. Foi quando alguém – movido pela ânsia de harmonia, paz e concórdia – chamou a polícia, que veio e conduziu a tríade à delegacia. À frente, como disse antes, a esposa, seguida da amante, seguida do Magricela em Desalinho, e seu ridículo rizinho monalísico.
Agradeci ao engraxate pelo pungente e minucioso relato e fui trabalhar. Chego no escritório e conto para Karlota a história e pergunto, ao final: Como é que duas mulheres podem se prestar a tamanho ridículo por conta de um sujeito igualmente ridículo?
- Cláudio, você é ingênuo.
Acreditei que ela fosse dizer “ridículo”.
- ?
- Elas não estavam brigando por ele, bestinha. A esposa estava brigando não por ele, mas pelo fato de a amante ter tomado o que era seu. Não importa se o que era seu era um Magricela em Desalinho. O que estava em jogo era uma questão de brio. A outra invadira seu espaço. A outra – a amante - também não brigava por ele. Ela queria era mostrar para a outra que ela tinha uma cota de participação, e que ele, o Magricela em Desalinho, estava com ela e não com sua rival.
Eu tinha outras coisas a perguntar, mas temi que Karlota adicionasse ao “ingênuo” outros adjetivos. Sentei na minha mesa, liguei o computador e fiquei pensando uma série de coisas ridículas.
Thereza olhou-me e perguntou:
- Acabou?
- Sim, acabou.
- Certo. Olha só, tem uma reportagem da Quem dizendo que a Preta Gil...
De fato, sou de marte. Relativamente ridículo. Previsível, ridiculamente previsível.
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