Vou contar pra vocês uma história muito comovente e, ao mesmo tempo, muito comovedora, que vai lhes causar profunda comoção. Ocorreu comigo e envolveu a minha própria vida. É tão comovedora que acho que não vou contar. Não vou contar! Não vou contar! Não vou contar! Vou contar!!. Quando contava meus dois anos – não faz tanto tempo assim, Nelson! – fui acometido de uma inigualável infecção. Morávamos em Guanambi, na Bahia. Algo que comi promoveu um transtorno mortal no meu sistema digestivo – e em sistemas outros da vizinhança gástrica. Emagreci o suficiente para que todos aqueles que iam visitar o “Filho doente de Jovita” olhassem-me com um quê de pêsames prematuro. Entravam no quarto, viam-me na cama (pele e osso), imóvel, o olhar perdido num outro infinito, balançavam a cabeça e saíam, fúnebres. Mentalmente, entoavam: “segura na mão de Deus...”. Claro que não me lembro disso. Sei dos detalhes por conta de depoimento de terceiros. O certo é que, no hospital, o médico dissera á minha mãe que era inútil ela insistir que eu fosse internado. Desenganara-me. E, meio que na brincadeira, comentara: “Liga não, a senhora já tem quatro filhos”, deixando subentender – brincando, é evidente – que um a menos não faria tanta diferença. Mal ele terminou a frase, e seu pescoço foi envolvido pelas garras de minha mãe, ofendida até a alma com o comentário insano; foi salvo pela intervenção de painho, que nem sempre foi misericordioso nas questões de família (Leiam Deus é Amor). Feitos os pedidos de desculpas, e dadas as desculpas, meus pais voltaram para casa, tendo, nos braços, Claudinho.Oh! (eu avisei a vocês que seria comovente e, ao mesmo tempo, comovedor). Movidos pela certeza de que eu tinha salvação – e de que, fatalmente, me tornaria uma figura ilustre no cenário brasileiro – resolveram mudar para outra cidade, cujo clima era mais frio. Fizeram-no. Salvaram-me da morte. Só não me salvaram da religiosa necessidade de visitar o banheiro, por força de os mecanismos internos de que disponho para processar o que quer que seja ficaram com defeitos. De modo que, posso assegurar, um terço de minha biografia se dá dentro de sanitários. Ao longo do tempo, alcancei certa técnica em assuntos de caráter sanitários. Ler no banheiro é um deles. Não sei quando começou tal hábito, mas já o praticava na Av. Sergipe, 615. Lembro-me, nitidamente, de quando, sentado, concluí o Primo Basílio. Lá fora, usuários do mesmo sanitário gritavam impropérios por conta de minha demora. Era Márcia. “Claudinho, falta muito?” A pergunta tinha óbvio e intencional duplo sentido. Nesta época, cometia pecado que hoje não mais pratico: ler romance no banheiro. No banheiro, deve-se ler somente o seguinte: poesia (exceto Fernando Pessoa, já que alguns de seus poemas são imensos), crônicas, contos, frases, dicionários (ainda que grandes), revistas, etc. Ou seja, leia aquilo que pode ser consumido rapidamente. Deixe sempre algum livro no banheiro. Há momentos em que a urgência o impedirá de ir à estante e selecionar o que vai ler. Hoje, por exemplo, tenho no banheiro quatro obras: Eu, do Augusto do Anjos, Tempo de Contar, do Joel Silveira, Correspondências, da Elizabet Bishop e Livro do Desassossego, do Fernando Pessoa. Vez por outra, elejo outro autor para compor a biblio-wc. Tome cuidado, leituras muito instigantes em geral resultam em fracasso nos seus intentos biológicos. Não leia nunca revistas como: Ti Ti Ti, Contigo e Quem. Nunca. Mas, se já o faz, paciência. Vire-se com sua prisão de ventre. Jornais, não os leia no banheiro. No máximo, destaque o caderno de cultura ou o de Cidade. Nunca leve relatórios de trabalho. Esses você pode ler em qualquer lugar sem ser acusado de desocupado. Vá por mim. Caso você queira saber qual a causa que levam algumas pessoas a ler no banheiro, eu explico. Posso não saber muita coisa, mas isso eu sei. As razões, claro, são psicológicas e sociológicas. Exemplos: Quem lê fora do banheiro, terá a certeza de que fatalmente será interrompido. “Tá lendo o quê?” Daí em diante, babau leitura. Quem lê fora do banheiro tem a sutil sensação que poderia estar fazendo algo mais útil, e sua consciência o impede do deleite da leitura, porque, com certeza, haverá algo a fazer e, com certeza, haverá alguém pra dizer: “Tanta coisa pra fazer e ele lendo, esse verme!”. Quem lê fora do banheiro está permanentemente à procura de uma posição cômoda, e nunca acha. Enfim, poderia discorrer infinitamente sobre as causas íntimas para o hábito de ler no banheiro, mas esse não é o melhor momento nem lugar. Talvez publique um livro somente sobre o tema. Penso até em patentear a idéia de as editoras publicarem livros à prova dágua. Pensem! Ler no chuveiro! Seria a glória! Teria muito mais a exortar-vos acerca de tão importante tema, mas já são três da manhã e, nesse final de semana, vou para Itaparica. Vou dormir, portanto. Antes, porém, vou tomar banho e... Fernando Sabino (A Falta que Ela me faz - crônicas).Para Nelson
Não de mim, mas do logos tendo ouvido é sábio homologar tudo é um. HIPÓLITO, Refutação, IX, 9.
27 de janeiro de 2007
Exortações Sanitárias
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4 comentários:
Tenho medo dessa cidade (Guanambi). Foi a mesma onde um cara encontrou uma RÃ num picolé. :OO Tem no Kibeloco, viu? Eu não inventei!!! ;D
Sim... então... Nelson (o homenageado) é uma pessoa que por sua natureza demora horrores no banheiro... se a pessoa resolve começar a ler na hora do impropério ninguem mais usará o tal cômodo do enorme apartamento... ninguem merece esperar na fila.
Caso possa interessar, já li no banheiro do seu antigo apartamento, em ondina, os capítulos iniciais de A Divina Comédia, de Dante. Mas você tem razão, seria uma mega cagada pra ler tudo. Daí parti para algumas reportagens da revista "Caros Amigos", que também eram enormes, mas em uma semana de idas e vindas ao recinto foram facilmente digeridas.
estou bastante arrependido de ter levado "Plexus" de Henry Miller para o banheiro. Ô livro ruim de ler no banheiro, rapaz! mas eu já tô no meio... Dagomé
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