1 de abril de 2007

Sete Talagadas

Para Alison


Algumas verdades, que aqui aponto, estão levemente contaminadas com algumas pitadas de mentira. E há mentiras, que aqui exponho, cuja tela invariavelmente é emoldurada com verdades incontestáveis. É que, por vezes, fatos verdadeiros carecem de algumas inverdades, que funcionam mais como cosmético, têm a função acessória de dar ao fato algum brilho. Mulheres bonitas, quando fazem sua pintura, não ganham muito em beleza, mas aqueles cosméticos agregam um discreto valor ao cenário. E, quanto aos fatos mentirosos, eles pedem que os contextualizemos com um mínimo de verossimilhança; para tanto, alguma verdade pode ajudar.

Quando Rogério – num e-mail que ontem me mandou - me contou a história de sua “iniciação” e o que viria depois, pude constatar que aquelas verdades tinham muito de mentira, ou, se eu estiver enganado, muitas daquelas mentiras estavam contaminadas da mais pura verdade.

Rogerio é funcionário da Infraero em Brasília. Sua vida está dividida entre cuidar de seus sete gatos (Parmênides, Heráclito, Homero, Nietzsche, Platão, Penélope e Mimi), trabalhar e escrever crônicas para o Jornal Radical News.

Sei que ele não vai se importar se eu publicar aqui trechos de seu e-mail, cínico que é.

“Luiz, se quer saber, minha brevíssima história com Socorro é uma mentira com altíssimo teor de verdade. Mas eu bem quisera que fosse uma verdade recheada de mentira por todos os lados. Deixo por sua conta, sabidinho, separar o joio do trigo, cristãos dos gentios, gregos de bárbaros.

Meu namoro com Rosane não durou mais que seis meses. Quando terminou, tive vinte dias para restabelecer-me. Sofri, óbvio. Primeiro porque fora ela que me iniciara nos prazeres da carne – desvirginou-me. Segundo porque ela era uma loira linda, dotada de uma arquitetura capaz mover montanhas.

Naquela tarde em que ela me disse que não sentia mais nada por mim, desesperado, fui ao cinema me distrair e tentar esquecer Rosane e seus encantos mil. Em cartaz, um filme que ainda não vira: Seven – Os sete pecados capitais. Pelo título, previ que fosse algum filme de aventura. E aventura envolvendo, obviamente, drogas, policiais, detetives, Robert De Niro, Samuel Lee Jackson, Nova York, etc. Entrei. E me arrependi. O filme, do começo ao fim, era tudo que uma alma em frangalhos precisava para afundar-se ainda mais no lamaçal da dor. Saí da sala com meu sofrimento ampliado cinco vezes. Era tarde quando cheguei em casa. Entrei cabisbaixo e fui pro quarto que dividia com meu irmão, Nonato.

Passados cinco anos sem que nos víssemos ou que nos falássemos, um amigo comum, Sandro, encontrando-me, disse-me que Rosane há muito queria ver-me, mas não tinha nenhum contato. Liguei para ela. “Rogériooooo!!! Não a-cre-di-tooooo!!!”, fez ela, surpresa. “Trate de vir em minha casa. Desde que você sumiu, milhões de coisas aconteceram. Vou te buscar onde você estiver”. De fato, depois que nos vimos, constatei que milhões de coisas tinham acontecido. Mas o mais impressionante, o que mais me deixou mais perplexo foi o fato de ela ter se tornado cafetina. Sim, cafetina. A mulher que eu amei e que me iniciara e que era maravilhosa, tornara-se intermediária, cupido, ponto de apoio, Eros encarnado.


Seu marido, Jorge, era seu sócio. Sua função era basicamente fazer sala para os homens que iam à sua casa. Rosane era responsável pelo intercâmbio.


Quando cheguei em sua casa, ali pelas 20:00h, já estavam ali uns três sujeitos e mais duas garotas, além de Jorge e Rosane.


Rosane perdera muito de seu encanto, mas ainda havia, nítidos, resquícios daquela que amei como um louco, e que como um louco me deixou.


Jorge, hospitaleiro, recebeu-me já com uma lata de cerveja. Tomei quatro latinhas. Incansável no intento de embebedar-me, lá vem Jorge com um copo de vinho, que tomei.


Vamos jogar palitinho? Era Jorge, o incansável, convidando seus convidados. “Só tem uma coisa: é apostado. Quem perder toma uma talagada de pinga. Pura.” Um litro de cachaça foi colocado no centro. Eu, como que predestinado ao sofrimento, perdi sete partidas, uma atrás da outra. Meu saldo agora era: quatro latas de cerveja, dois copos de vinho, sete talagada de pinga. O primeiro indício que tive de que as coisas não iam bem foi quando minhas frases não iam até o final. Sim, estava bêbado.


Nesse ínterim, um gol quadrado e verde estaciona. Era meia-noite. Rosane, inquieta, mais que depressa se aproximou de meu ouvido e disse: “É ela.” Disse-o como se tivéssemos um pacto prévio, como se tivéssemos arquitetado um encontro, como se eu, pelo simples fato de visitá-la, deixasse nas entrelinhas a insinuação de que iria necessitar de seus serviços de cafetina. Ora, eu estava ali em nome dos velhos tempos, caramba! Fui porque me era importante a sua existência no meu passado. Fui para resgatar as boas lembranças de uma história de amor fracassada, ora essa! Dizendo-me “é ela”, Rosane jogou um balde de água fria nos meus poéticos intentos. Falou mais alto nela seu profissionalismo e, pareceu-me, uma espécie de cordialidade, uma espécie de boas-vindas, manifesta em forma de prestação de serviços de alcova. Serviços esses, Luiz, que em momento algum, em momento algum insinuei que quisesse!


O segundo indício de que eu não estava bem foi quando tentei levantar-me e o mundo à minha volta perdera a fixidez.


Fui apresentado a Socorro que, de pronto, pediu que a chamasse de Help, como era vulgarmente conhecida. “Oi, Help.” Mais que depressa, e sem qualquer discrição, tanto Rosane quanto Jorge providenciaram que eu ficasse sozinho com Socorro, digo, Help. Ligaram o som e foram para outro cômodo da casa. E ficaram à espreita, indiscretamente à espreita, visivelmente à espreita, já que até eu, que estava bêbado, percebi a movimentação que denunciava o ardil; um ardil cheio de cochichos, risinhos e pedidos de silêncio aos indiscretos risonhos (que eram os figurantes contratados para dar aquela idéia de amigos que se reúnem para jogar palitinho). Um bando de safados, Luiz.


Às minhas frases inconclusas, Socorro, digo, Help respondia com monossílabos. Às suas perguntas dissílabas, eu respondia com um olhar pretensamente sensual, pretensamente safado, pretensamente canalha, pretensamente cínico. Os resíduos de lucidez que ainda me restavam diziam-me que, para situações como aquelas, era necessário ao homem (usuário de serviços da alcova) que incorporasse à sua personalidade as qualidades acima: sensual, safado, canalha e cínico. É bem verdade que nunca fui um bom ator, Luiz. E eu não tenho a menor idéia se fui sucesso de crítica... e tenho dúvidas se o fui sucesso de público: Help.


Socorro, digo, Help, em face de minha indecisão, e vendo que, se ela não tomasse uma medida, daquele mato não sairia coelho, disse: “Vamo?”. Vamo, disse eu. Mais que depressa, como que num passe de mágica, Rosane surge e, como quem estivesse participando do diálogo, diz: “... mas é o seguinte, Rogério, ela vai dirigindo... ela deixa o carro dela aqui na porta e vocês vão no seu.” Esse foi o terceiro indício de que eu não estava em condições do que quer que fosse.


Entramos no carro e ela dirigiu até o centro de Taguatinga. Lá, como se não bastasse, Socorro, digo, Help me vem com mais cerveja. Tomei. Depois veio com outra bebida que eu juro para você, Luiz, não era água.


Acordei com o sol inclemente batendo em minha cara. O carro, era o meu. O lugar, era a rua da casa de Rosane. À minha esquerda, um corpo desconhecido. Era o quarto indício de que eu estava, de fato, fora de mim nas horas anteriores. Eu estava todo suado. A cabeça doía. Olhando a mulher no banco da esquerda, que estava totalmente reclinado, vasculhei na memória alguma evidência, algum elemento que a fizesse familiar ou, no mínimo, conhecida. Nada. E, agora que estava lúcido, enxergava melhor. A mulher tinha os cabelos num redemoinho tsunâmico e suava feito cuscuz.


Como já era manhã de domingo, vi grupos de pessoas que passavam olhando para dentro do carro. Eram Testemunhas de Jeová. Testemunhas de Jeová sempre andam em grupos. E, sempre que podem, olham para dentro de carros onde há suspeita de fornicação. Abri o vidro do carro. Socorro, digo, Help acordou. Limpou com o braço uma baba que lhe escorria pelo canto esquerdo da boca; tentou, inutilmente, aplacar a fúria de seus cabelos, que estavam num estado capilarmente lastimável, e devolveu a saia à sua original condição de recato.


Nesse momento, Luiz, penso em todas as besteiras que um homem comete. E penso em mim, como o maior desses homens. Sim, porque eu sou um besta, Luiz.


Luiz, quando ela, afinal, resolveu falar alguma coisa, percebi que, pela regularidade de seus dentes (inferiores e superiores), nenhum deles era resultado da natureza. Nenhum deles, Luiz, era verdadeiro. Se fossem, teríamos uma proeza da natureza, teríamos a perfeição (od) ontológica.


Esse, Luiz, foi o quinto indício de que eu estava no mais alto grau de bebedeira que uma besta quadrada pode alcançar.


Talvez, Luiz, você queira saber o que resultou de tudo isso. Só lhe digo uma coisa: naquela mesma manhã, Rosane, a profissional Rosane, me ligou. “E aí, comeu?”.


Dentro de mim, minha alma não podia aceitar o ponto a que cheguei e o ponto a que chegou Rosane. Pareceu-me que, associado à minha ultra-ressaca, uma desilusão e uma tremenda decepção com a vida se apoderavam de mim. Naquele torpor, naquela situação terrível, Luiz, ironicamente, precisei de socorro, digo, help.

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