10 de fevereiro de 2009

Molambo

Para Luciano Costa

Para ouvir Rosa Passos é preciso cumprir alguns ritos. Do contrário, não se houve, só se escuta. E o rito é simples, mas pode ser muito difícil para muita gente. Primeiro é preciso que num fim de tarde (pode ser num sábado) você não tenha absolutamente nenhum compromisso. Sei que estou falando de algo surreal num mundo de obrigações mil, mas eu disse logo acima que não era tããão fácil. Segundo, é preciso que, pela janela, esteja vindo um vento suficientemente forte para balançar a cortina, mas suficientemente fraco para não se sentir frio. Sei que estou falando de algum surreal, em se falando de cidades como a nossa, Salvador, ou como a do poeta Manoel Lacerda Lima, Cuiabá, ou como a do Devana, Brasília, mas eu disse logo acima que não era tããão fácil. Terceiro é preciso que haja uma cama coberta por uma colcha de retalhos. Isto é fácil, basta que sua mãe use uma máquina Singer, recolha pedaços diversos de retalhos comprados na loja Mundo dos Retalhas na Praça 9 de Novembro e costure. Sei que estou falando de algo surreal, em se falando de um mundo onde colchas, cheniles, fronhas e correlatos são vendidos a migué, mas eu disse logo acima que não era tããão fácil. Quarto - é preciso que você tenha uma caixa de som digna. Quinto - é preciso que, nesse fim de tarde, você esteja absolutamente só. Sei que estou falando de algo surreal, em se falando de pessoas que têm família, amigos, filhos e, claro, 3 ou 4 fantasmas. Mas eu disse logo acima que não era tããão fácil. Pois bem, cumpridos esses requisitos, segue-se o ritual: a) Tome um banho - seria um ato profano ouvir Rosa Passos sem tomar banho, ó Jequietita!; b) Vá lá na estante e busque qualquer obra do pessoal da geração de 45, exceto Raquel de Queiroz e Clarice Lispector. De preferência, José Lins do Rego ou Graciliano; c) Pegue o CD da Rosa Passos, que você deverá ter comprado nas Americanas; d) Execute a canção de número 8 (Molambo). É que, se bem o conheço, você deve achar muito peculiar e muito interessante que alguém dê tal nome a uma canção. A letra da música é a mais clara expressão da franqueza. Considerando que você é um filósofo, Luciano - um dissecador do real e do sublime -, um bando de reflexões poderão ficar a postos na primeira estrofe. Contenha-se. É um conselho inseguível, eu sei. Mas eu disse logo acima que não era tããão fácil. Pois bem, se você resolveu ler Fogo Morto, não deverá passar da página 50. É que, nas condições acima (colcha de retalhos, vento do litoral, solidão, música), você fatalmente vai dormir e acordar ali pelas 20 horas, quando entrarão pela porta adentro duas mãos em cujas palmas haverá um tablete de chocolate meio amargo da Nestlê. Difícil? Mas eu disse logo acima que não era tããão fácil.

4 comentários:

d.b disse...

esse ritual é demasiado complicado... quando eu li sobre não ter nenhum compromisso à tarde e ouvir numa caixa de som boa eu até animei, mas quando li sobre a parte do vento fresquinho eu desisti e parei de ler, pois, como o senhor bem demonstrou que sabe, e por experiência própria, o calor por essas bandas de brasíia é insuportável, especialmente nesse época do ano, especialmente dentro da senzala onde eu vivo.

no entanto, li esse artigo escutando rosa passos.

poeta que sou, me desapeguei dos detalhes, coloquei na música molambo, liguei um ventilador, fechei os olhos e me pus a imaginar...

no ent

Anônimo disse...

Devana, quero o restante da postagem. Aquele "no entanto" é o que mais me interessa.

Silvinha disse...

Sempre ele, o chocolate meio amargo.

Anônimo disse...

Vou ouvir Rosa Passos hoje mesmo...quem sabe um chocolate meio amargo não me apareça janela a dentro.