13 de janeiro de 2007

Felicidade

Alguém já disse que a consciência é o primeiro requisito para a infelicidade; que ser consciente é ser infeliz; que saber da real realidade é estar impedido de ser feliz; que saber da fome na mesa dos outros nos impede de sorrir; que a dor na alma de muitos não nos dá direito a gozar o que quer que seja; que estar ciente das calamidades todas, das tristezas todas, das injustiças todas, dos medos todos, das guerras todas, das vicissitudes todas, das mortes todas, das feridas todas, de todas as paixões não correspondidas, de todos os sonhos não realizados, de todas as vidas não vividas nos impossibilita de sequer pensar em felicidade. Alguém já disse que, enquanto não soubermos a Verdade, não há como ser feliz. A felicidade, segundo esse mesmo alguém, decorre do pleno desconhecimento do sofrimento da humanidade. Ser feliz, ainda que momentaneamente, será sempre um leve baixar das pálpebras, breve silenciar, breve deixar de ouvir. Faz quatro semanas que fui feliz por cerca de 15 minutos. Era domingo, peguei o carro e sai sem rumo, dirigindo mui lentamente pela Avenida Oceânica. Para quem sai de Ondina, tem-se, à esquerda, os prédios da Orla Marítima de Salvador, e, à direita, o mar e suas incansáveis, perpétuas ondas. Liguei o rádio, que mantenho sempre sintonizado na 107.5. Rádio Educadora da Bahia. Fazia sol em Salvador, aquele sol das 17:20h, quando ele já se esconde atrás do Farol da Barra. O locutor, com voz de domingo e calma de baiano, anunciou: “Estamos apresentando Seleção do Ouvinte. Agora, ouçamos, de Ângela Rô Rô, Amor, Meu Grande Amor”. No sinal, ao meu lado esquerdo, uma mulher, na mesma sintonia, fechou os olhos quando dos primeiros acordes, sorvendo as primeiras notas da canção, como se fossem goles de água no deserto. Fiz o mesmo, com sede igualmente desértica, mas abri os meus antes de ela o fazer. Ao abrir os seus, e olhando para sua direita, flagrou-me com seus olhos melodicamente cúmplices. Por um curtíssimo lapso de tempo, fomos felizes; essa felicidade de quem baixa momentaneamente as pálpebras, mas mantém atentos os ouvidos.

3 comentários:

Nelson disse...

Olha, sempre penso nisso... Feliz mesmo era a "velinha de taubaté". Talvez a feliciade em si sempre esteja ligada a um pouco de ignorancia. Mas, sempre há de haver um "mas", acho que devemos exaltar sempre quem sabe das mortes, das mentiras, da maldade que nos cerca e ainda tem a capacidade de se sentir feliz. Por pelo menos 15 minutos. Esta sim é a felicidade plena!
Quanto aos vômitos, também tenho algumas histórias legais. Posta aí que eu posto lá.

Anônimo disse...

Luiz Cláudio, meu nome é Daniel. Sou amigo de seu irmão Paulo. Moro em Brasília-DF.
Assim como o "Radical News", sempre espero ávido e ansiosamente por seu novo conto, seu ensaio ou sua crônica. Invejo sua maestria em, com tanta sensibilidade, vislumbrar aspectos tão sublimes em situações corriqueiras aparentemente banais, fora seu humor mordaz. O talento da família Sena é fantástico!
No entanto, permita-me uma crítica daquilo que você apresentou em "Felicidade". Se entendi bem, sintetizando - não sei se consegui captar a essência -, a felicidade reside na ignorância em relação aos males do mundo. Essa concepção remonta a Hororé de Balzac e a Anatole France. Data venia, parece uma visão alienante, senão cínica, em que a iniquidade e a desigualdade são naturalizadas, e, conformados com esse fatalismo, nos eximimos da intervenção e do engajamento revolucionário.
Em sentido oposto, creio que, sem a pretensão de forjar uma "ontologia da felicidade", um dos meios de ser feliz é se solidarizar com os empobrecidos e espoliados, animando sua conscientização relativa à dinâmica social (luta de classes) e, assim, se solidarizando com suas lutas, tornando-se irmãos de um destino inextrincável. Encasular-se, atomizar-se, insular-se em uma felicidade individualista é apenas corroborar, pela passividade, para o aviltamento e a desumanização perpetrada pelo sistema capitalista. Portanto, tomar lado pelos "condenados da terra" (Franz Fanon) fomenta uma certeza, derivada da fé e da esperança (dimensões vitais), de extremo regozijo e júbilo: a de se guiar pela Verdade...

Krháudynho disse...

Caro Daniel, fico feliz que leitores com senso crítico como o seu me honrem com comentários tão inteligentes. Perdoe-me tardar tanto em dar retorno à sua postagem. Quanto ao seu posicionamento, estamos plenamente de acordo. Deixe que acrescente dois aspectos ao seu comentário.

Ainda que a justiça e a abastança abundassem na Terra, restar-nos-ia, a nós os inquietos da Verdade, o desconhecimento da mesma Verdade. As razões primeiras de todas as coisas, o princípio motor de todo o processo criativo. A alguns homens – e mulheres – não se lhes dói a ignorância da Verdade, e, porque não pensam, são felizes – no seu modo de ser feliz. Quem nos dera, Daniel, pudéssemos falar como Fernando Pessoa, em um dos seus heterônimos: “Por isso quando num dia de calor/Me sinto triste de gozá-lo tanto,/E me deito ao comprido na erva,/E fecho os olhos quentes,/Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,/Sei a verdade e sou feliz”. Esse é o primeiro ponto – a inquietação pela verdade.

O segundo ponto é aquele que principio no blog: a justiça e a abastança não abundam na terra, o que nos impõe uma segunda inquietação. E que nos leva a entrar em coro com Jeremias, nas Lamentações (versículos 1 a 3 do capítulo 1): “Como está sentada solitária aquela cidade, antes tão populosa! Tornou-se como viúva, a que era grande entre as nações! A que era princesa entre as províncias, tornou-se tributária! 2 Chora amargamente de noite, e as suas lágrimas lhe correm pelas faces; não tem quem a console entre todos os seus amantes; todos os seus amigos se houveram aleivosamente com ela, tornaram-se seus inimigos. 3 Judá passou em cativeiro por causa da aflição, e por causa da grande servidão; ela habita entre os gentios, não acha descanso; todos os seus perseguidores a alcançam entre as suas dificuldades. Esse é o segundo ponto – a inquietação pelas dores todas de nossos irmãos.

De modo que, nesse segundo ponto, o que há de mais nobre, Daniel, é, de fato, reagir a esse estado de coisas – conforme suas próprias palavras. Somos, pois, infelizes porque ignorantes da Verdade, infelizes porque grassa no mundo males diversos.

Para aliviar um pouco nossas vidas, Daniel, resta-nos atentar para um comentário do Domenico di Mais: “Se a estética é a ética do futuro, precisamos reconstruir o conceito de estética que incorpore
a luminosidade de todos os seres humanos, fontes e geradores de luz e de beleza”. Ou seja, na pior das hipóteses, resta a arte, para desafogo, para desabafo. E para dar algum trabalho para nossos fantasmas.

Meus 15 minutos (no fundo, foram menos de 5) vão nesse rumo, Daniel: a estética. O prazer de presenciar, em minúsculos momentos da vida, a poesia da vida, dentro de uma estética que me agrada.

A propósito, Daniel, estarei publicando, hoje, “Lua”. O fato se dá em Brasília. E vou dedicá-lo a você, irmão das dores.