5 de fevereiro de 2007

O Cabo das Tormentas

Foi Celeste quem me conduziu àquele naufrágio emocional – e físico. Conto como se deu. Quando meu amigo Tito Lívio me convidou para passar uma semana na Península de Maraú, no extremo-sul da Bahia, eu já havia chegado a outro extremo: o de querer fugir de minha própria casa. Celeste era um espetáculo de mulher. Bonita, bem informada, um arsenal ambulante de regras de etiqueta. Mas sofria horrores, de si para si, por não ter concluído o segundo grau – e (cá entre nós) acho que o primeiro ela também não concluíra. Acho. Mas isso é irrelevante. Celeste chegou em minha casa por solicitação de minha tia, que me assegurara, mãos erguidas aos céus (para obtenção da cumplicidade divina), tratar-se de moça de boa índole e que, por razões de saúde, deveria fazer caminhadas diárias na areia da praia, para ajustar a curvatura inferior dos pés. Dizia minha tia: Meu filho, você vive viajando. Não pára em casa. Deixa ela ficar em seu apartamento, só por uns dois meses... Só hoje, que olho para retrovisor de minha vida, posso ver que, por trás daquele pedido, havia um ardil para que o Sobrinho Viajador, afinal, se casasse. Era o que queria minha tia. Era o que queria minha mãe. Era o que queria Celeste. Mas, definitivamente, não era o que eu queria. Muito menos com Celeste, é bom que se diga. Celeste, aquele espetáculo de mulher, que, sem que eu pedisse, tratava com esmero megalomaníaco minha casa, que enfileirava meus livros com régua, que reagia militarmente a qualquer presença de pó nós móveis, que – vejam vocês a que ponto se chega – olhava com um esgar de repugnância quando, porventura, eu saía com uma calça jeans com a barra desfiada, que, suposta esposa amada e dedicada, aguardava-me para o jantar, que, definitivamente, tomara posse. Lá pela quinta semana de convivência (período em que, coincidentemente, não viajei), por mais casto, puro, respeitador, honesto e probo que tivesse me comportado durante aqueles dias de matrimônio compulsório, ei-la que, vendo-me deitado em minha cama, lendo, faz a clássica pergunta: Você se importa se eu me sentar na sua cama? Pensei em fazer-me de desentendido, fingir ser eunuco, tratá-la como irmã (ou prima), ler para ela trechos do livro que tinha à mão, enfim, dar uma de joão-sem-braço. Mas, seja por minha iniciativa, seja pela dela, eu estava diante do inevitável. E cedi. Cedi durante cerca de oito meses. Durante oito meses, sem amar (porque eu não a amava), fui amado por Celeste, e fui tratado como seu (no que há de mais possessivo nesse pronome). Amando-me, ela deixou vir à tona todos os esperados comportamentos de esposas possessivas (ainda que compulsórias): ciúmes, controle sobre a vítima, controle sobre o que a vítima come, veste, lê, pensa, faz, não faz, desfaz, refaz. E, para meu espanto, houve um declínio algo preocupante no requinte com que se punha à mesa. Como fora enfermeira em outras eras, brindava-me, no almoço ou no jantar, com a narração realista, pungente e cruel do histórico hospitalar de todos os pacientes a que assistira. Invariavelmente, tais narrativas iniciavam-se tão logo erguia a primeira porção de comida à fome. E lá vinha ela: Quando eu estava no quinto mês de estágio no Hospital Roberto Santos, fui cuidar de dona Eulália, que tinha... Desse tinha em diante, por cerca de uma hora, ela me trazia para a mesa a visão clarividente de dona Eulália, cardíaca, de seu Jérson, Relojoeiro, de seu Paulo, aposentado, de Virgínia, a acidentada, de Magno, sifilítico, de Vicente, cobrador de ônibus; enfim: o elenco era maior que o número de figurantes d´A Paixão de Cristo, e suas enfermidades nem mesmo Almodóvar poderia vislumbrar sem um quê de pia compaixão. Esses e outros atributos (dos quais vos poupo) davam ao conjunto da obra uma moldura trágica. E eu precisava fugir, antes que completasse nove meses de relacionamento. E fugir antes que, valha-me Deus!, um rebento, o sangue do meu sangue, viesse compor a tríade surrealista. Foi nessa época que meu amigo Tito Lívio, de férias, iria passar uns dias num paraíso no sul de minha terra. Luiz, dizia-me Tito, vamos eu, a Ísis, minha sogra e a família de minha cunhada passar uns dias a ver o vento despentear os cabelos dos coqueiros. Venha você e sua... namorada... Fui. Sem Celeste. Criei todas as condições necessárias para que ela não fosse. Mas ao fim, cinicamente: Oh!, Celeste, sinto tanto que você não possa ir. Você sabe o quanto me é cara a sua presença! E emiti mais uns três ou quatro “Oh!”. Para quem não conhece, a Península de Maraú é um paraíso. E, por isso mesmo, chegar lá é uma via crucis: Deixa-se o carro na cidade de Camamu, pega-se um barco que, em uma hora e meia, nos deixa em Maraú. Dali, pega-se uma jardineira até o extremo leste da península. Lá, diante do mar, algumas pousadas aglomeradas formam a única visão da presença de civilização no local. Pronto. No mais, ler, contemplar as ondas, mergulhar, comer peixe, meditar, tocar violão, observar os cardumes coloridos, e, à noite, o luar. Passados alguns dias e algumas noites, aquela rotina de paz – um breve intervalo em minha rotina de infernal claudicância –, se, de uma lado, era um alento, de outro, provocara uma espécie de estupor em mim, abrupta que fora a fuga e drástica que estava sendo a mudança de ares. - Tito, vou embora. - Homem de Deus! - Tenho compromissos inadiáveis. - Mas homem de Deus! Naquele fim de tarde, depois de muitas partidas de frescobol, Tito, ainda incrédulo de minha... partida, explicou-me: Luiz, o barco sai de Maraú, às 07:00 da manhã, para Camamu. Não haverá jardineira que posso levá-lo até lá. Logo, você terá de levantar-se às 04:00 (03:00, considerando o horário de verão), caminhar pela praia até o extremo norte da península e, lá, pegar o barco. Considerando que sua mochila pesa 5 quilos, a caminhada na areia da praia, por três horas, fa-la-á pesar 30. Mas como seu compromisso é... inadiável... Naquela noite, jantamos e jogamos conversa fora. Levantei-me no horário previsto, despertado pelo Tito. Peguei a mochila, despedi-me dele e da Ísis, e saí porta fora. Qual não foi minha grata e poética surpresa?! À minha frente, uma constelação contracenava com a lua cheia, sobre o mar, que mugia alto no silêncio ensurdecedor daquela madrugada. Parei por um instante e lamentei estar sozinho e não ter com quem compartilhar aquele outro espetáculo. Caminhei alguns metros tendo, à minha esquerda, a relva e os coqueiros – visíveis somente pela luz tênue da lua –, e, à minha direita, o mar –, visível apenas pelas espumas das ondas da maré alta e pelos íris da luz nas ondas. E, no horizonte, como quem olha uma bola de futebol no campo, a lua. Depois de andar por três minutos, a luz da pousada já estava distante, e, daí em diante, só nas proximidades de Maraú é que encontraria alma vivente. Depois de 10 minutos, minha imaginação começou a transformar o espetáculo poético no mais amedrontador dos filmes. Primeiro que o barulho do mar fazia-me crer que, a qualquer momento, um monstro gigante viria à tona e me engoliria, conduzindo-me, como a Jonas, para as profundezas do mar. Segundo que a lua, outrora bilaquiana, tornara-se um astro de dimensões colossais, um Olho Gigantesco do Universo que me acompanhava. Terceiro que, à minha esquerda, a selva poderia produzir (assim eu imaginava) uma alimária perversa, com presas de mamute, que me faria correr em desespero para o mar, onde encontraria o Monstro das Profundezas do Mar. Depois de 20 minutos, já estava assombrado comigo mesmo. Eu, minúsculo ser, sob a mira do Olho Gigantesco do Universo, oprimido pelo mar sem fim, pela selva selvagem, e pelo barulho do mar. Decidi que deveria voltar à pousada já que faltavam duas horas e meia de caminhada. Mas, brioso, mudei de idéia e dei continuidade à tortuosa, amedrontadora caminhada. Ali pelas 6 horas – quando todos os pensamentos malévolos já tinham feito pousada em minha cabeça, quando todos os arrepios já me tinham acometido, quando a profecia do Tito Lívio relativa ao peso de minha mochila se cumpria, quando o Olho Gigantesco do Universo já ia mais alto (e me oprimia) –, olho para trás, por sobre o ombro esquerdo, e pude ter o vislumbre – só o vislumbre – de algo que se movia no mesmo rumo que eu, mas que, pelo escuridão que nos circundava, impossível distinguir se era a Alimária Com Presas de Mamute, se o Monstro das Profundezas do Mar, se um Emissário das Trevas Profundas ou se, tão somente, uma criação de minha mente assustada, terrivelmente assustada. Pensei em jogar a mochila e sair correndo. Mas, pensei melhor, se for o que estou pensando, correr será em vão. Mudei de idéia. Brioso, disse: Boa noite!. Mas disse-o com timbre de voz alto (e trêmulo), iludido pela idéia de que poderia assombrar a assombração. Não houve resposta. Mais à frente, quando eu já me preparava para desmaiar, a assombração disse: A maré está alta! Deus. Quase que grito por minha mãe, por Deus, por Jesus. Não desejo nem a Osama Bin Ladem tamanho sofrimento. A maré está alta! Era isso que retumbava em meu ouvido. Acalmei-me quando veio a pergunta: Tá indo pra Maraú?. - Tô – monossilabicamente trêmulo. - Também. Mora aqui? - Não – monossilabicamente trêmulo. - Vai pegar o barco pra Camamu? - – monossilabicamente trêmulo. - A maré tá alta, né?! - – monossilabicamente trêmulo. Para minha alegria, à minha direita, as nuvens no horizonte foram parcialmente iluminadas pelos raios do sol, que ainda não despontara. Só isso, só essa certeza de que o sol estava vindo, deu-me alento suficiente para enfrentar a assombração que, diga-se de passagem, era bem cordial. Tomei coragem e perguntei de onde era. Ele (ou ela) disse-me que os pais tinham terras na região e que estava indo para Itabuna. Quando o sol tomou o lugar da lua, pude ver o rosto da assombração. Era um rapaz de uns trinta anos, com uma mochila – maior que a minha – às costas. Por orientação dele, pegamos um atalho por entre os coqueiros, por onde chegaríamos mais rápido às embarcações. Às 06:55 estávamos sentados no barco, com mais algumas pessoas. Ele então olhou para mim e fez: - Qual seu nome? - Luiz Cláudio. - Posso lhe dizer uma coisa, Luiz?. - Sim. - Eu nunca, nesses meus trinta anos, senti tanto medo na minha vida. Quando você disse “boa noite!” daquele jeito, eu quase saio correndo. Por que você deu aquele grito tão... sei lá?. Ele não precisava saber do que se passava comigo. E minha vaidade falou mais alto. Chegamos em Camamu. Peguei um ônibus para Salvador e cheguei em casa. Joguei a mochila de 30 quilos no chão. Retirei os sapatos e fui ligar o som, quando percebi que haviam cortado o fornecimento de energia durante minha viagem. Previ que, naquela noite, iria enfrentar nova escuridão, o Olho Enciumado do Universo, o Monstro das Profundezas da Alma, o Fantasmas do Espírito dos Vivos, e aguardar, impaciente e trêmulo, pela aurora.

6 comentários:

Silvinha disse...

Excelente.

Krháudynho disse...

Obrigado, Silvia. Vindo de você, meu ego agradece. Devo estar postando, em breve, um texto chamado O Palmeiras Completo. Espero que goste. Beijos!!!

Anônimo disse...

Ao adentrar nas palavras colocadas “simultaneamente” (rsrs também creio que estou na era dessa palavra), pareço viver contigo cada momento... Bate uma saudade do tempo de criança, em que recitava versos e cantarolava em baixo dos prédios tendo como platéia você e mamãe! Ao ir desvendando cada pedacinho de ti transcrito aqui, mato um pouco a saudade da forma como fala em meios aos requintes de um bom leitor. Saudades tio (ainda posso chamá-lo assim?) Clod!!!! bjooo

Nelson disse...

Eu acho que conheci esta tal Celeste... Não é aquela, daquela história?

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