12 de fevereiro de 2007

Ligeiramente Apertado

Para Cinthya (data venia)

Não tenho pudores para falar de minhas deficiências. Falo mesmo. Falo. Exponho minha nudez. E declaro: eu não sei arrumar uma casa. Faço uma coisa e outra. Lavo, passo, etc, mas gerenciar a arrumação total de uma casa é tarefa que exige todo um conjunto de habilidades e conhecimentos de que não disponho. Tudo se aprende, eu sei. Quem sabe, agora que me fixo definitivamente em Salvador, e que passo a ter um endereço, dê início aos exercícios necessários ao aprendizado. Ainda bem que posso culpar meus pais por não me terem permitido, junto com Marlúcia e Márcia, atuar nas coisas do lar. Painho não nos permitia, a nós homens da casa, perambular pela cozinha: “Cozinha não é lugar de homem”. Eis a raiz de minha incompetência. Imaginem vocês que, no Convento onde eu estudava, cheguei a dar aulas de artes manuais, inclusive tecelagem. Foi o suficiente para um conflito Paínho X Jacira (professora de arte). Meu pai, quando soube que eu estava ensinando tecelagem para meus colegas, foi pessoalmente à diretoria do Convento e, para meu constrangimento, disse que “filho dele não faz coisa de mulher”. Jacira, na primeira aula de artes após a intervenção de paínho, chega para a turma e diz, para minha vergonha: “Meninos, a partir de hoje, ninguém mais peça ajuda nem aula para o Luiz; de nada, ouviram? O pai dele esteve aqui e...”. Não podendo ficar vermelho, fiquei branco. Em Casa: “Poxa, paínho, precisava o senhor ir lá?”. “Tá me chamando a atenção, Cradinho? Desaforado!”. Murchei. Mas, por dentro, reprovava tal procedimento paterno. Hoje, qualquer criança (garota, claro) faz tudo numa casa. Cinthya, por exemplo, quando tinha seus 8, 9 anos, era craque em qualquer matéria de casa. Sua mãe, que era hábil como a peste em tudo, inclusive em questões do gênero, dera-lhe instruções precisas sobre a labuta diária numa casa, e a fizera exercitar tais conhecimentos. Lembro-me que, certa vez, fui escalado para lavar os pratos na casa de Cinthya. Lá fui eu, com ar de especialista, tomar conta da pia. Além de copos e pratos, havia outras panelas e utensílios que, para minha preocupação, davam certa complexidade à tarefa. Fossem somente pratos e copos e panelas, vá lá, mas havia outros elementos nocivos à minha pobre alma. Oh!. Dez vezes Oh!. Cinthya, percebendo claramente que um amador iria se postar nas adjacências da pia (e curiosa como sempre foi), ficou a observar, com aquele olho de quem tem certeza de que um adulto estava prestes a ser repreendido em nome de Santa Higiene. E, claro, não resistiu. “Tá errado”. Eu já esperava a intervenção repreendedora e superior e implacável e imperativa. “É assim: tudo que for sendo lavado primeiro tira o sabão primeiro, Tio.” Ou seja, tudo aquilo que ia sendo ensaboado e colocado de lado deveria ser desensaboado por ordem de ensaboamento, conforme o Manual do Ensaboador Moderno (ed. Casa Limpa, 1994). Inicialmente, ela só fez a observação, mas, não sei se por piedade ou se por impaciência, resolvera assumir a atividade, afastando-me, nada discretamente, para um canto. Fiquei em pé, observando. Ela, meio que ignorando minha presença (ou ignorando inteiramente), começa a cantar em voz alta, acompanhando o som que vinha da sala. Era uma das músicas do CD que lhe presenteara: “Olha o que o amor me faz” (As Quatro Estações, de Sandy e Júnior), cuja letra não era exatamente o que poderia acontecer com aquela garota de 8 anos, mas ela cantava com tal emoção e comoção e exaltação, que qualquer um diria que a letra fora feita pra ela. Eis a letra, na íntegra: “Meu coração bate ligeiramente apertado/ligeiramente machucado/caiu tão fundo nesta emoção/Primeira vez que o amor bateu de frente comigo/Antes, era só um amigo/ Agora, mudou tudo de vez/Será que você sente tudo que eu sinto por você?/Será que é amor? Ta tão difícil de esconder/Oh, Oh, olha o que o amor te faz/Te deixa sem saber como agir/Oh, oh, quando ele te pegar/Não tem pra onde você fugir/Oh, oh, olha o que o amor me faz/Fiquei tão boba, fiquei assim/Oh, oh, nada será capaz de apagar esse amor em mim!!!”. Ela cantava numa altura bem alta. Aliás, toda mulher que arruma sua casa canta mais alto que o próprio som das caixas. Nesse ínterim, eu já não mais existia. Reuni os cacos do meu orgulho, e fui para a sala, em busca de alguma coisa legível. Involuntariamente, cantarolava baixinho: “Ligeiramente apertado... lá, lá, lá”.

10 comentários:

Anônimo disse...

a Silvinha cantarolou para aliviar a fúria que estava tomando conta dela ao perceber que enfim a atividade de lavar as louças tinha sobrado e vc se safado!!!!!! Dilene

Anônimo disse...

RSRS J Como o tempo passa rápido! Guardo a mesma fita que me presenteou quando pequena em que escreveu atrás referências a canção: “vai ter que rebolar”... hoje apesar da das diversas preferências musicais, não poderia deixar de cantarolar “vai ter que rebolar” para nos apagar da memória, “vai ter que rebolar” para deixarmos tantas lembranças cair no esquecimento, “vai ter que rebolar”... e como sei que ninguém vai querer viver com a mão na cintura rebolando (pelo menos espero rsrs), tenho a certeza que sempre estaremos interligados pela força da grande amizade semeada durante anos... Sobre o tema em enfoque não poderia deixar de comentar que meu coração está “Ligeiramente apertado” de SAUDADES: da meninice, dos momentos vividos, daqueles que ficaram marcados e lembrados para sempre... enfim, saudades suas tio Clod!

Nelson disse...

Olha, realmente a técnica de Cinthya (esse nome é afrescalhado assim oficialmente ou artificialmente?) é uma coisa fandarsdiga... Esse negócio de desensaboar primeiro o que foi ensaboado primeiro é uma norma que desconhecia até então. Mas o que eu já sabia, de antemão, era sua inapetência para qualquer prática! Aliás, você tem um certo jeito para remar. Não foi á toa que veio da africa até aqui remando, num navio negreiro.

Nelson disse...

PS.: quem é Silvinha, objeto do comentário do Anônimo?

Krháudynho disse...

Nelson, saiba que vou voltar para Moçambique de Avião Negreiro...

Nelson disse...

De avião negreiro! Hum... Bem, isso tem que ser relacionado a algum tipo de sofrimento. Você não pode ir sentado confortavelmente num avião! Vamos botar você num teco-teco... Você vai soprando num canudinho que irá fazer com que as turbinas funcionem! Você e um punhado e o sacizeiro!

Anônimo disse...

Luiz Cláudio,
Gostaria de formar uma parceria contigo. Faço parte do MAIS (Movimento de Ação e Identidade Socialista), cujo jornal, "Letras & Lutas" (http://www.letraselutas.com.br/ ), destina uma seção à cultura. A proposta é a seguinte: enviarmos periodicamente textos que versem sobre a teoria estética, com tônica radical. Creio que temos estofo intelectual o suficiente para tal intento, convicção derivada de nossa troca de idéias a partir de "Felicidade". Minha principal referência é Adolfo Sánchez Vázquez ("As Idéias Estéticas de Marx", e.g.). Há pensadores brasileiros, tais como Nelson Werneck Sodré ("Fundamento da Estética Marxista", por exemplo) e Leandro Konder ("Os Marxistas e a Arte" e "As Artes da Palavra"), que sistematizaram, com maestria, as idéias dos principais intelectuais estrangeiros. Sei que você está entretido com sua faculdade. Podemos forjar um compromisso bem flexível, na medida do possível, a partir das obras supracitadas - se você não encontrá-las em nenhuma das bibliotecas daí, eu me disponho a enviá-las, xerocadas, via Correios, ou digitalizadas, via e-mail -, compartilhando impressões. Considero que, metodologicamente, a revisão de literatura e a adição de nossas próprias experiências culturais benefiará nosso esforço de síntese teórica. Que tal?
Axé, Marx!
Evoé, Malcolm X!

Daniel
Brasília-DF

Krháudynho disse...

Daniel, vou fazer uma busca do material para ficar familiarizado com o tema. Já acessei o site e conheço da obra de alguns colunistas. Mande-me, sim, o material, e daremos início às construções. Tenho alguns idéias que decorrem não necessariamente de Marx, mas de algumas proposições do Durkhein. Mais isso a gente vê depois. Caso você tenha skype, a gente conversa melhor.

Abraços,

Luiz Cláudio

Anônimo disse...

Luiz Cláudio,
Qual é o seu "Nome Skype"? Se você já quiser adiantar, o meu é "dapesi13" ou "Daniel Pereira da Silva" (nome inteiro), Brasília, Brasil.
Evoé!

Nelson disse...

"Axé, Marx"?!
"Evoé, Malcolm X"?!