16 de março de 2007

Lembra de Mim

Para Beatriz Brüehmüeller



Helena sabia que a turma do escritório não deixaria passar em branco seu aniversário de 29 anos. Flávia, sua assistente – e confidente para assuntos inconfessáveis – deixara transparecer que havia uma surpresa sendo arquitetada. Por isso, pela certeza de uma pequena festa em sua homenagem – e ainda porque merecia, ora essa! –, agendou uma escovinha para as 09:00 horas e escolheu seu vestido lilás – presente que Pedro lhe dera quando do passeio que fizeram juntos a Florianópolis e que ela não usou porque, no frio daquele junho, era impraticável aquele decote. Escovinha, brincos afro e a sandália preta de salto agulha e adereços lilases. E um colar solitário. A única inconveniência era dirigir. Aquela sandália teimava em ficar no intervalo entre o acelerador e o freio. Resolve dirigir descalça. Melhor assim. Garagem do prédio onde trabalha. Elevador. Décimo terceiro andar. Sala oito. Departamento de Marketing. Não sabe contabilizar quantos elogios recebeu desde que estacionou até sentar-se em sua mesa. Só Pedro não estava lá para vê-la. E me olhar com aquele olhar de quem me despe. Lástima. “Amiga! U-lá-lá!”. É Flávia, carregando um buquê de flores. Presente do Pedro. Os colegas do departamento deixam transparecer que não querem transparecer que estão a postos para irem à sala de reuniões, onde Flávia já organizou a festa hipoteticamente surpresa. “Minha filha, só porque é seu aniversário, tinha que atrasar três horas? O chefe tá uma arara contigo. Ele está na sala de reuniões e quer todo o material da campanha de final de ano. Deixa eu te dar um abraço forte!!”. Ela sabe o que a espera. Dá um tempo para que o pessoal tenha condições de simular naturalidade ao se aglomerar na sala de reuniões e vai para lá com sua pasta da campanha. Abre a porta e é saudada com vivas e aplausos e parabéns e abraços e elogios etc. Abre um sorriso e faz um ar de surpresa nada convincente. Livros e CDs e DVDs. Presentes. Que bom que o Raul teve o bom gosto de presenteá-la com o álbum novo do Ivan Lins – Novo Tempo. “Obrigada, gente!”. Não vê a hora de tirar a sandália, que já tomou as devidas providências para desenvolver dois calos naquele sofrido calcanhar. Termina o dia. Garagem. Pés descalços no trânsito. Garagem do seu prédio. Elevador. Quarto andar. Apartamento 401. Tira a chave da bolsa depois de uma procura de três minutos, enquanto seus pés clamam por um divórcio permanente daquela famigerada sandália. Abre a porta aborrecida. “Porque diabos eu não penduro essa bendita chave no pescoço?”. Entra em casa. Ávida, tira a famigerada sandália. Joga a bolsa no sofá. Senta-se. Mas, imediatamente, lembra-se do Ivan Lins. Adora Ivan Lins. A bolsa. Remove o papel de presente. Remove o plástico do CD. Nada mais irritante que a extrema qualidade da plastificação de CDs no Brasil. Arre!. Liga o aparelho de som. Os primeiros acordes do Ivan – “... daquilo que eu sei, nem tudo me deu clareza...” – fazem-na mudar o semblante. O cansaço foi substituído por um prazer que entra pelos ouvidos e sai pelos olhos, olhos que ela acaba de fechar para melhor beber a melodia. Fome. Cozinha. Geladeira. Olha o iogurte. Olha a cerveja. Pensa. Tudo me é lícito, mas nem tudo me convém. Maçã. Maçã me convém. Lástima. O custo altíssimo da manutenção dos seus 51 quilos. Volta à geladeira. Toma o iogurte. Respinga no vestido. Lástima. “... quero toda sua pouca castidade...”. Quarto. Toalha. Banheiro. Chuveiro. Sabonete em creme Ekos, da Natura. Shampoo Niely Gold Chocolate (Nutre e deixa os cabelos mais fortes,com maciez e brilho). Pensa em Pedro. O que estará fazendo aquele calhorda neste momento? Deixa a água cair em seu corpo. Mais Ekos da Natura. Vontade de dormir bem aqui. Trinta reais numa escovinha. Trinta reais num investimento que acaba de desfazer-se. Condicionador Niely Gold Chocolate. Creme Hidratante idem. “... sua alegria escandalosa...”. Pedro é uma pedra. “... vontade de passar dos seus limites...”. Toalha. Quarto. “... no novo tempo, apesar dos castigos...”. Senta-se na cama. Camisola. As mulheres, no seu quarto, têm gestos mais lentos que aqueles que fazem na sala, na cozinha, no banheiro. É como se o quarto fosse seu tabernáculo. Sua sagrada masmorra. Há uma infinidade de cremes no compartimento lateral do guarda-roupa. Dove. Leite de Colônia. Remover toda a maquiagem, todo aquele moldura para nada. Nada é Pedro, leitor. Segue-se o creme facial. “Oh, Madalena, o que é meu não se divide...”. Lentamente, ela passa o creme A, que será seguido do creme B. Nas mãos, o creme C. No rosto, o creme C também. Há toda uma ciência no uso dos benditos cremes. E o ritual é feito com tal teatralidade e suavidade e singeleza que temos a impressão de que ela tem a impressão de que há uma platéia observando cada movimento. “... o mar é uma gota comparada ao pranto meu...”. Finda a trajetória dermatológica, segue-se a escolha da roupa de amanhã, sexta. Amanhã é sexta-feira. Minha bota marrom, calça jeans, camisete branca, e o casaco de couro marrom (vai que esfria). Fatal. Pedro. Pedro é uma pedra no meu caminho. “... o que é meu não se divide...” Eu não vou ligar. Não ligo. Ele que ligue, se quiser. Cansei de msn. Porcaria. Vinte e nove anos. Mais alguns dias e Flávia me entregará novo buquê. Lástima. Terei trinta anos. Lástima. “... vai valer a pena ter amanhecido... começar de novo...”. Trinta anos. Sem filhos. Eu pago minhas contas. E sou dona do meu nariz. Trinta anos. 51 quilos. A decisão pela calça jeans e adjacências surpreende pela rapidez. Normalmente, a eleição da roupa do dia seguinte supõe que a platéia pagou caro pelo bilhete e quer drama, muito drama. E nada mais dramático que a inquietação de uma mulher que escolhe uma roupa. Tão lindo o buquê! “... com força e com vontade, a felicidade há de se espalhar...” O buquê ficou no escritório. Deixa lá. Sei lá. Talvez ela precise mostrar a todos que está tudo bem, que eles estão bem. Talvez ela precise que ele saiba que ela colocou as rosas num vaso dágua para dar-lhes sobrevida. Deve ser coisa do subconsciente. Sei lá. São quase dez horas e a maçã/iogurte não foi capaz de preenchê-la. Lástima. Iogurte. Se ele sabia, porque não foi me ver? Porcaria de buquê! “Lembra de mim, a gente sempre se casava ao luar...” Senta-se. Chora. Levanta-se. Não vou chorar. Não vou chorar. Ela é dona do seu nariz. Paga suas contas. Na bolsa, o cartão de Pedro, e sua letra bonita, mas ilegível: “Docinho, as rosas não falam. Parabéns! Pedrito". Grande coisa! E daí que as rosas não falam? Isso lá quer dizer alguma coisa? Lástima. “... tão naufragados e exaustos de amar...”. Deixa cair a toalha. Seu imaginário público está enrubescido. Veste a camisola. Docinho... docinho é sua vó! “... se existe um pouco de prazer em sofrer...” Pedro estava na cidade, claro. Mas foi ela quem disse que não queria vê-lo nem pintado de ouro. “...depende de nós...“ Foi ela que o deixou plantado no Praça de Alimentação. Foi ela quem terminou com tudo. “... que faz tudo prum mundo melhor...” Ela tinha seus motivos. Ele tinha justificativas. Ele entendia seus motivos. Mas ela, implacável, não aceita justificativas. “... que o sol descortine mais as manhãs...”. Apaga a luz. Deita-se. “... se devoravam com a sede dos presídios...” Não pode dormir antes de desligar as luzes. E precisa pegar a bolsa. Reler o cartão de Pedro. Quem sabe haja uma mensagem subliminar ilegível?!. Quem sabe uma marca dágua?! Pega o cartão. A bolsa – repositório de mais coisas que porão da família Adams –, aberta, deixa entrever o celular. Naquele instante, ela se lembra de tê-lo colocado no vibra call durante a reunião. Havia 17 chamadas e uma mensagem de texto. O número: 071-9177-2889. Claro que era o número do Pedro, leitor! Do Bento 16 é que não podia ser, né?!. 17 chamadas. Lástima. A mensagem de texto: “Docinho, te pego às 11:30? Estou te ligando desde meio-dia. Me perdoa, vai! Pedrito”. “... vieste com beijos silvestres colhidos para mim...” Cachorro! Mas ele não tinha culpa, ora essa! Foi ela quem fez a burrada. Ele mandou flores, ligou diversas vezes, mandou mensagem. E ela, feito besta, imaginando coisas. “...Fique certa, quando o nosso amor desperta, logo o sol se desespera, e se esconde lá na serra. Oh, Madalena”. Pedro é notívago e acha que todo mundo o é. Lástima. Molhei o cabelo. Só falta ele querer que eu inaugure o vestido lilás manchado. Esboça um sorriso. Alegria de vê-lo. É 13 de janeiro. 23 horas. Noite de quinta-feira. Mas o sol estava brilhando como nunca jamais brilhara.

2 comentários:

Anônimo disse...

Luiz,
Mais uma "magnum opus"! Gostei da roteirização cinematográfica. A intercalação dos trechos musicais de Ivan foi uma seleção primora! Realçou, em cada momento, o estado de ânimo da personagem. Foi um recurso de exposição de sentimentos muito bem utilizado. Entrecortando a narração onisciente e permitindo declarações intimistas da própria protagonista, você retratou uma série de situações aparentemente banais com contornos dramáticos cativantes. Como sempre, genial! Parabéns e obrigado!
Evoé, Baco!
Daniel
Brasília-DF

Anônimo disse...

Você simplesmente se superou. Parabéns