12 de janeiro de 2009

Confissão 2

Eu devia ter uns 17 anos e morava em Brasília. Já era tarde quando finalmente saí da casa dela. Vocês bem sabem quão dificultosa é uma despedida numa noite fria, quando o único sistema de aquecimento é o seio da amada (Valei-me, Castro Alves!). Despedi-me dela com a mesma dificuldade com que um cão se afasta de seu osso (Valei-me, Snoop Dog). A rua, naquela madrugada, estava escura e deserta. Mas aquela não era a primeira vez que escuridão e deserto emolduravam as noites de despedida shakespeareana (Valei-me, Hamlet). Mas, naquela noite, foi diferente. À distância, coisa de 200 metros, pude divisar alguém que vinha em minha direção. Pensei: “Neste horário, ou é alguém que também se afasta de seu fóssil, ou alguém à procura de uma carteira com alguns trocados”. Ok, havia um infinito número de alternativas, mas, naquela noite, eu só pensava nestas duas hipóteses. Um misto de temor e tremor se apoderou de meus nervos (Valei-me, Kierkegaard). Não, não havia como entrar numa outra rua. Retroceder? Nem a pau. Seria desonrar meu pai (Valei-me, Gonçalves Dias). Resoluto, prossegui minha caminhada rumo àquele desconhecido, rumo àquele outro eu que, sabe-se lá, talvez estivesse tão atemorizado quanto eu (Valei-me, Levinas). Faltava muito pouco para o desfecho do mistério e, quem sabe, para o fim de um drama. A rua estreita e sem calçamento, o silêncio entrecortado de breves ganidos de vira-latas, risadinhas agudas de íncubos[1] e súcubos[2], nuvens escuras cobrindo a lua, e o atrito sonoro entre meu coração e a parede interna de meu peito esquerdo. Eis o cenário. Faltavam 20 metros para chegar ao destino inevitável. Num átimo de tempo, quando 5 míseros metros nos separavam, dei um gigantesco tabefe no sujeito e saí em desabalada carreira rumo à pista principal, onde estaria a salvo. Não, não olhei para trás. Fui para casa, ouvir de minha mãe as já rotineiras reclamações. Naquela noite, refletindo sobre o ocorrido, julguei ter agido inteligentemente. No dia seguinte, narrando o fato aos meus outros 7 irmãos (Fábio, Maurício, Niméia, Petrônio, Marcia, Marlúcia e Paulinho)[3], fui alvejado por uma enxurrada de gargalhadas. Riram de mim durante uma semana. O caso foi contado e recontado em todas as cercanias da capital federal. As versões se multiplicaram em progressão geométrica. Algumas diziam que eu não só espancara o sujeito mas que também disse-lhe uma série de impropérios, outras versões diziam que nos atracamos numa luta de gregos e troianos (Valei-me, Homero). Ainda hoje, passados tantos anos, se vou a Brasília, há sempre um engraçadinho que traz à tona uma das infinitas versões do caso. Ela nunca soube da história verdadeira. Na noite seguinte, quando novamente fui encontrar abrigo para o meu ferido, combalido, injustiçado coração, estavam reunidos seus familiares em torno de seu tio Jorge, que narrava a todos uma história macabra: ele tivera que dobrar o turno no trabalho e era muito tarde quando veio pra casa. Descera do ônibus e seguira rumo à casa de minha namorada, de quem era vizinho. À distância, vira alguém caminhando de modo indeciso em sua direção. Temeu. Mas prosseguiu. Quando estava há poucos metros do estranho... Antes que ele concluísse, pedi um copo com água.


[1] Demônio masculino que, segundo velha crença popular, vem pela noite copular com uma mulher, perturbando-lhe o sono e causando-lhe pesadelos.

[2] Demônio feminino que, segundo velha crença popular, vem pela noite copular com um homem, perturbando-lhe o sono e causando-lhe pesadelos.

[3] Gente da mais alta periculosidade.

Um comentário:

Anônimo disse...

é cláudio, o único detalhe é que passados 16 anos, a nós (3), ainda rimos... e muito.

mauricio