28 de abril de 2011

Uma Aquisição Interessante

Djavan - A rota do individuo (Ferrugem)



Por Fábio Sena

Aquisição extraordinária domingo passado, na feira do rolo: Djavan, Coisa de Acender. O título diz muito pouco do conteúdo. Submerso nos escombros de uma mocofaia estruturada para ser exibida no Museu de Arte Moderna de São Paulo, o Cd era esmagado por outras várias obras musicais cujo valor merece reflexão antropológica. Arranquei-o das profundezas num maravilhoso golpe de sorte e, dando manutenção à tática perversa do desprezo de quem deseja com avidez o objeto, o depositei novamente nos escombros - que lembravam o Afeganistão pós-ataque bushiano. Ah! Como doeu ver Djavan submetido a tais agruras. Mais ainda ter que vê-lo servindo de objeto de barganha irresponsável. Mas como conciliar duas práticas extremamente distintas. Fato é que imediatamente retirei-me do local e, num relance, virei-me para o vendedor e indaguei do preço. Espantei-me com o que ouvi. Teria ele pronunciado treze ou três reais. Meu proverbial ceticismo inflacionou a idéia e afastei-me, não o suficiente para ouvir a outra proposta. “Faz dois”. Que bom, pensei!. Meu coração palpitou, mais ainda quando lembrei que já havia investido meus parcos recursos na compra de um Cícero, um Petrônio e um Althusser, a preços bastante camaradas. Restava-me no bolso o último e, mais que nunca valioso, “um real”. Numa ação enérgica e desesperada, extraí do bolso os vinténs e praticamente os joguei nas mãos do vendedor, cujo semblante e indumentária estão a merecer maior atenção deste cronista, que promove este relato ainda em estado de êxtase desenfreado.

Apanhei o Djavan e imediatamente evadi-me do local, temendo uma revisão de preço por parte do feirante. O mesmo aceitou o real quase que como imposição. As coisas sucederam num átimo de tempo tão miúdo que havia o risco de uma nova versão ser posta em prática. Embrenhei-me feira adentro como uma ratazana assustada. Num momento kakfiano, senti-me estranho e perseguido pelos feirantes, e corria. Entendi a essência maior de Chico: “quanto mais eu corria mais eu ficava”. Fato é que, não sem alguns arranhões e dissabores de outras ordens, alcancei o exterior do estertor: a feira.

Na Frei Benjamin, relativamente liberto dos monstros maus que me perseguiam, pude saborear o valor da compra. Apalpei a obra que buscava encontrar fazia anos. Senti um prazer típico daqueles experimentados em outras eras na mesma feira do rolo, do período em que eu e Maurício, ávidos por rock, comprávamos de Ademir - no tempo em que este só comercializava vinil - as obras q’inda hoje guardo comigo.

O disco, de 1992, é uma pérola. Neste momento mesmo estou a ouvi-lo. A tarde, calma e de sol fresco, constituiu o cenário perfeito para deliciar-me. O disco é todo bom. Adorei-o na inteireza porque coerente consigo mesmo, porque sua fórmula é a simplicidade, e seu conteúdo um mundo vasto. Adorei-o todo.

A Rota do Indivíduo (ferrugem), que abre o disco, remeteu-me imediatamente ao distrito federal. São meros e infinitos quatro minutos e vinte e quatro segundos de uma nostalgia avassaladora, de uma beleza inefável, que já me conduziram, ontem e hoje, para várias eras da existência. A letra de Orlando Moraes, muito bonita, ainda está aquém, muito aquém da beleza melódica implementada por Djavan, que materializou um sentimento cuja razão é desconhecida. Trata-se de uma rota verdadeiramente individual e incoerente, sem qualquer obediência à lógica formal. O conjunto, no entanto, letra e música, são quase uma obra cinematográfica. As imagens, repletas de um lirismo que beira à brutalidade, invadiram minha mente e dominaram meus sentidos, reduziram-me a uma condição primacial. Logo cedo, acordaram-me com a canção. O sono latente aliado à preguiça idem, mais a conjunção das imagens de um sonho que me levaram a eras mesozóicas de minha existência, produziram um efeito devastador em meu corpo, meu cérebro, minha alma... Fui ferozmente arremessado ao vazio, ao abismo musical de proporções inteligíveis, inexplicáveis.

Boa noite, a da seqüência, é de uma musicalidade cuja beleza reside exatamente na despretensão, elemento característico da obra djavanística. A canção não pretende eternidade e também não busca sagrar-se. Parece ter surgido de uma idéia de fim de tarde, ou num tédio matutino. Mas como ela se alia em beleza a Ferrugem. Como ambas se entrelaçam. Um verso simples como “quem não tem pra quem se dar o dia é igual à noite” é pronunciado com tal beleza, numa sonoridade tão elástica e profana, que minha mente ébria o equipara a Dante, a Drummond.

“Só dizer sim ou não, mas você adora um se”, eis aí uma obra sobre a qual os críticos musicais e literatos deveriam se debruçar. Se reúne em si ilhas, arquipélagos, florestas, desertos, mundos inteiros porque seus versos vão no íntimo do átomo de nossas composições pessoais, e independe de nacionalidade, do credo e da cor. Em menos de cinco minutos, uma verdade. O eterno “se” doloroso, que a todos atordoa. Aquela sobre quem ele fala, para quem o “se” é uma estratégia de vida, faz doer em todos a dor universal mais permanente e constante. Dor de dente o tal de “se”. Afeta-me também.

Em Linha do Equador, Caetano se reencontra, mas graças à beleza melódica imposta por Djavan. Que coisa linda esta música, que graça simples, que empatia com o tudo, que propriedade raríssima do Caetano recente, que união literária e musical mais bem acabada. A canção - parece - é uma verdadeira descoberta platônica: estava lá, pronta, no campo das idéias, e os sábios souberam trazê-la, humanizá-la e apresentá-la.

Por fim, seguem nessa linha de beleza Violeiros, Andaluz, Outono, Alívio (bela melodia do baixista Arthur Maia) e Baile. Não me lembro de disco que me tenha causado tamanha sensação de liberdade e desejo de viver como este nos últimos tempos, nos quais mais me surgem perspectivas de ascensão da mediocridade como autoridade suprema.

Com Djavan, nos últimos dias, recobrei a sensibilidade de percorrer minha trajetória pessoal, resgatando da memória, cada dia mais dispersa e desgastada, na busca dos elementos que contenham algumas respostas. Desnecessário informar que nenhuma resposta encontrei porque - parafraseando o velho e insubstituível Pessoa - nenhuma resposta há. Meu ceticismo seria capaz de encontrar esta resposta - que não há resposta - mas a evasão que promovi de mim mesmo serviu para ocupar um local neste vasto espaço onde há resíduos de uma forma de vida onde a poesia é cultivada sem os adereços de mediocridade que esta “modernidade” impõe.

Concluo: é engraçado notar que, mesmo quando submerso num mar de agruras que não se manifesta nem se materializa, é possível detectar aqui e acolá flores e arte poética que permitem o deslumbramento e impulsionam a mente a redimensionar-se, fazendo o sujeito exacerbar na criatividade.

Criar, inclusive, tem sido o grande elo entre este narrador de histórias desconexas e a vida. Criar tem sido a aura e a alça deste caixão existencial que sustento por profunda paixão à morte e seus sortilégios. Segue-se.

Um comentário:

Unknown disse...

Posso compartilhar contigo uma experiência não tão nostalgica, porém significativa.Desde que Fabinho trouxe-me "Ária" pude perceber o reencontro inusitado a músicas de Cartola, Edu Lobo, Tom Jobim, Luiz Gonzaga e Gilberto Gil.Para Djavan um momento leve como ele próprio revelou numa entrevista sobre o trabalho, uma volta ao começo.Para mim,especialmente quando ouço "Disfarça e chora" e "Oração ao tempo" uma contradição- pois quase fico desidratata por conta deste meu momento onde estou bastante acompanhada(Bernardo, Victor,Mauricio, Tahis e Amine)no entanto sinto-me tão ária...