14 de abril de 2007

SANTIFICADA TRILOGIA

Valei-me, São Bento!

Seria bom se ela não me olhasse
Com aquele olhar de quem não diz (mas diz).
Não me concentro nunca ali na classe,
Pra cada explicação em peço bis.

Esse romance vai me dar problemas.
Da flecha de Eros o peito crivado,
Eu já prevejo que aquelas algemas
Vão me prender num cárcere privado.

Mas eu confesso que quero ser preso,
Virar cativo, um serviçal moderno...
(acreditai, isso não é piada)

Pois ela hoje me deixou surpreso:
No intervalo, lá no meu caderno,
Você me deixa toda arrepiada”.


Valei-me, Santo Antônio!

Já faz um mês que estamos nesse jogo.
São trinta dias de inquietação.
Quando eu avanço, ponho-a em fogo,
Quando ela vem, eu fico sem ação.

Pois eu por mim ficávamos assim,
Vivendo a mágica dessa magia.
Embora eu tenha a certeza do “sim
É seu “talvez” que hoje me contagia.

Se ela me olha, finjo que não vejo;
Se eu a encaro, ela me ignora.
Mas já prevejo o nosso final:

Ela me escolhe e eu a elejo:
Para maínha, o modelo de nora
Para seu pai, o genro ideal.


Valei-me, Santa Luzia!

Pra onde olho vejo os olhos dela
E até nos sonhos sonho em seu olhar.
Se acordado, eu só penso nela,
Se estou dormindo, ela é meu sonhar.

Quanta eloqüência têm aqueles cílios,
Denunciando o rímel que é um luxo!
Pálpebras cobrem dois lindos gatilhos:
Que, se ela não puxar, eu mesmo puxo.

Pra completar, ei-las: as sobrancelhas,
Que nessa casa da visão celeste
Funcionam como protetoras telhas.

(eu vou dizer, e não fique vermelha)
Vou retirar agora os óculos que veste
E avançar no mel como as abelhas.

11 de abril de 2007

Piercing

Ama, esse meu sentimento é epidêmico:
Eu sou mais um que entra nesta jaula.
A minha idéia já é algo fenomênico:
Poder tocar tuas mãos, no fim da aula.

Esse meu vasto sentimento, ama,
E essa minha idéia, que já virou fato,
Não cabe mais, de grande, em minha cama;
Não cabe nos limites do meu quarto.

Eu já não posso mais ficar comigo,
Circunscrevendo-me a Luiz e a Cláudio
Quero expandir bem mais meu horizonte.

Vou residir todinho em teu umbigo:
Aquietar-me nele e reduzir o áudio:
Beber teu ser no ponto exato: a fonte.

Tua Penugem em Tua Superfície

O que eu quero não está tão fundo.
Meu belo horizonte é uma planície
Por onde vago, feito um vagabundo:
Tua penugem em tua superfície.

Mas como és muito impiedosa, ama,
A mim me negas até um segundo,
Uma migalha . És mesmo desumana
Para comigo, pobre morimbundo.

Pra te ser franco, já perdi a calma.
Me diminuo sempre mendigando;
Reduzo a nada minha biografia.

Já que me distancias de tua alma,
Deixe-me ao menos contemplar, babando,
A tua sinuosa geografia.

Mulher Odontológica

Eu já prevejo com facilidade,
sem ser profeta ou mesmo vidente,
toda uma enxurrada de felicidade
que me virá da força do teu dente,

me judiando e me rasgando a pele,
num delírio sem tamanho, sem medida.
É natural, no afã, que a gente apele
E oscile entre um beijo e uma mordida.

É natural, no amor, qualquer loucura,
E qualquer tipo de selvageria
Passa de imediato a ter lógica.

Minha formatação se configura
(eu já sabia que você riria)
Só pra você, mulher odontológica!

Minha Morenice na tua Brancura

Nossa correspondência é inconteste.
A gente em tudo tá tão toda, ama;
Olhe: de norte a sul, de leste a oeste
Sempre o mesmo calor, a mesma chama,

Que a mim me toma como uma peste.
E esse mau, querida, não tem cura.
Equivale a u´a mão que a luva veste,
Ou a minha morenice em tua brancura.

Posso acreditar, amada, que inda reste
No seu íntimo algum leve receio
Ou algum tipo de medo: é ou não é?

Pois eu lhe digo, faça igual Tomé
(o coração palpita no teu seio?)
Ou você crê, meu bem, ou... faz um teste.

Tratado de Tordesilhas

Eu já me sinto seu proprietário,
Por mais machista que isto lhe pareça.
E já pedi a bênção do vigário
pra que esse amor vingue, cresça e floresça.

Eu já me sinto seu único dono,
Por mais esnobe que se lhe apresente.
E sei que quando despertar do sono
Terei, ao lado, Tu, o meu presente.

Vou desatar a fita que a enlaça,
Rasgando o papel que se lhe cobre,
Descobrindo-lhe, querida, toda a graça...

E agora, que o "presente" todo enlaço,
Serás cativa duma alma nobre,
E envolvida por braços de aço.

Tá, eu explico!

Essa mudança abrupta de prosa pra poesia tem motivos que o próprio conteúdo explica. E é mais forte que eu. Mas não vou antecipar detalhes até que as coisas se concretizem.

Estúpido Cupido

Para Eliane (minha Psiquê preferida)

Sei que o universo todo me apóia
E tenho, a meu favor, o próprio Eros.
Eu te observo como a uma jóia
(que pena que meu saldo é só de zeros)

Embora brinque, sou sempre sincero
Nessa minha incômoda paranóia:
Querer você, azinha, como eu quero,
É ter uma fratura na tipóia.

Esse querer intenso já ecoa,
Feito um brado, em todos os recantos.
(feito Dom Pedro e seu braço erguido)

E esse brado intenso já lhe soa
Suave e harmonioso como um canto;
E eu já te tenho sem jamais ter tido.

8 de abril de 2007

Ridículo, Demasiado Ridículo

Para Nietzsche


As vezes – e são muitas essas vezes – acho ridículo o modo como nos comportamos. E acho ridículas muitas coisas que falo e penso e faço. Abunda na humanidade um bando de coisas ridículas. Tudo bem que há muita coisa que é maravilhosa. E são inúmeras as coisas maravilhosas que faço e penso e falo. Queiram vocês ou não. Para cada coisa ridícula que faço posso apontar outra que seja grandiosa ou, no mínimo, nobre. Querem exemplos? Pois bem. Todas as vezes que eu e Thereza estamos na praia, levanto algum tema polêmico sobre a existência, sobre razões e fins ou qualquer aspecto em defesa da metafísica. Isso é ridículo. Por acaso, praia é lugar de filosofar!? Convenhamos. Por outro lado, leio com ela os romances do Graciliano. Isto é nobre. E não me venham com esse papo de que, no fundo, no fundo, é puro egoísmo. É nobre e pronto.

Não sei dizer se sou mais ridículo que nobre, ou mais nobre que ridículo. Eis uma contabilidade difícil. Vou dar 50% pra cada lado. Thereza dirá que essa contabilidade é ridícula e que até mesmo escrever sobre isso é ridículo. Nesse caso, acho que o percentual aumenta pro lado do ridículo. Ou seja, sou mais ridículo do que deveria ou poderia. Mas – eis uma coisa nobre – admito que sou ridículo. Ridículo seria não admitir a própria ridicularidade. Nesse caso, agora que entendo como nobre o gesto de reconhecer que sou ridículo, o percentual aumenta para o lado da nobreza. Empate.

Fica a pergunta: sou relativamente nobre ou relativamente ridículo. Essa pergunta é ridícula, eu sei. Logo, sou relativamente ridículo. Reconheço. Mas, se reconheço que – fazendo essa pergunta ridícula – sou nobre, deixo de ser relativamente ridículo para ser relativamente nobre. Vão dizer: mas isso é mesma coisa! Não é, não. Se digo que sou relativamente ridículo, o que pesa na mente do ouvinte (ledinte) é a palavra ridículo. Se digo que sou relativamente nobre, nobre é a palavra que fica na mente de quem ouve (lê). Bem sei que, no fundo, se é relativo, pende igualmente para ambos os lados. Mas isso é relativo. E ridículo.

Pois vou contar um caso para vocês. Caso esse que contei para Thereza. Ela achou ridículo, mas pode ser que não seja.

Sempre que vamos ao shopping (qualquer shopping), uma força misteriosa (gravitacionalmente misteriosa) nos conduz para a livraria (qualquer livraria). Eu, para ler coisas ridículas, avaliar a arte gráfica das capas, a escolha das fontes e apreciar os títulos (dar título a um livro é tarefa árdua). Ela, Thereza, para ler as fofocas de todas as revistas semanais (o que tem lá seu grau de ridicularidade). No último final de semana, por acaso, deparamo-nos, na Siciliano (é que eles tem um café expresso muito expressivo), com o stand dos mais lidos. Homens são de Marte, Mulheres são de Vênus, Homens Fazem Sexo, Mulheres Fazem Amor. Coisas do gênero. Thereza sabia que não me calaria diante de títulos como esses. E já foi logo dizendo: “Pode falar. Eu sei que sua língua tá coçando”. Todas as minhas mulheres me acham previsível. Thereza já lê meus pensamentos. De modo que isso me poupa de falar muito. Tem coisa mais ridícula do que ser previsível? Mas ela não perde por esperar! Qualquer dia desses vou ficar nu lá na Estação da Central da Lapa e quero ver se ela vai dizer que já esperava por isso. Tem coisa mais ridícula e imprevisível que um sujeito nu na Estação da Lapa, ali pelas 18:30h? Não tem.

Lá vou eu, com minha infalível e ridícula previsibilidade, contar pra ela o fato verídico e ridículo. Foi assim, Thereza: Eu estava no Setor Comercial Sul, em Brasília, indo pro trabalho. Eram cerca de 13:30h, eu já havia almoçado e ia pro escritório. Como todos sabem, o Setor Comercial virou um camelódromo. Lá, vende-se de tudo, inclusive livros velhos, que era o produto que me levara ao local. Ali, entre livros velhos, manuseando aquele armazém ambulante de ácaros de todas as espécies, vi que todo mundo, menos eu, estava olhando para uma cena ridícula. Um policial conduzia uma mulher que se escabelava, fora de si, e que xingava encolerizada uma outra mulher. Essa outra, conduzida por outro policial, também se escabelava, também estava fora de si, e respondia aos xingamento da primeira. Logo atrás, conduzido por um terceiro policial, vinha um sujeito magricela, que andava normalmente, embora a roupa estivesse em desalinho e o cabelo idem. O detalhe – o mais safado dos detalhes – é que o Magricela em Desalinho trazia, num canto recôndito da boca (indisfarçável como o sorriso da Monalisa), um rizinho safado, entende? Uma espécie de discreta alegria. Um quê de vaidade. Uma demonstração ridícula de que estava gostando, aquele verme.

Momentos antes – conforme relato dramático de um engraxate –, ele, o Magricela em Desalinho, tentou, inutilmente, apartar as duas mulheres, que se engalfinhavam. Uma, sua mulher. A outra, sua amante.

Sua mulher fora informada – por um anônimo – que ele, o Magricela em Desalinho, naquela manhã, naquela hora, naquele local, iria se encontrar com a outra. Não deu outra. Ela, a titular, já tinha alguns indícios que davam como líquido e certo o adultério, mas ela – como boa devota de São Thomé – só se conformaria se visse, com seus próprios olhos, seu homem com a outra. Não deu outra. Após certificar-se que aqueles dois eram quem pensava – momento em que um misto de ira e dor se apoderou de sua alma – segurou com firmeza a alça de sua bolsa (que deveria estar pesada, como convém às bolsas em geral), girou-a no ar uma vez, duas, direcionando-a para sua rival, indo, por fim, atingir a região logo acima da bunda. Antes que tal região fosse atingida, quando a bolsa ainda se dirigia à região suprabundar, o Magricela em Desalinho pode acompanhar, com seu olhar desesperador, a bolsa em seu movimento inevitável rumo às costas da outra. Não deu outra. Pela cara de dor que fez o engraxate ao relatar esse trecho do episódio, pude deduzir que – naquela região – se formaria um hematoma de tamanho médio. Mas a coisa não parou por ai não, Thereza. A bolsa – agora autônoma - não se continha em si de euforia e satisfação, atingindo regiões nunca dantes atingidas, gerando hematomas de tamanho GG. A bolsa autônoma poderia ser vista, em sua ira bolsífera, por sobre as cabeças dos transeuntes. Sincronicamente, a esposa se referia à amante com adjetivos inefáveis. Um deles – só para exemplificar, Thereza – era “vagabunda”. Os demais iam daí pra pior; muito pior. Mas seria ridículo reproduzi-los numa livraria. Você bem sabe com sou discreto, Thereza.

O Magricelo em Desalinho, diante de tal situação, tentou conter a ira mortal de sua esposa e a aplacar a fúria incansável da bolsa; ao mesmo tempo, súplice, rogava à sua amante que evacuasse do local, rápido como quem furta, a fim de evitar um óbito ou coisa menor. Essa, por sua vez, defendia-se das bolsadas e respondia aos xingamentos da amante com outros de igual teor. O Magricela em Desalinho, em face de batalha tão sangrenta, viu-se incapaz de pacificar as combatentes. Quero acreditar, Thereza, que ele deve ter filosofado, de si para si: “Por Zeus, antes uma em paz que duas em conflito”. Todo pensamento profundo nasce de situações de conflito. Essa frase é minha, Thereza.

Por esse tempo, os expectadores já se aglomeravam em torno do Trio Parada Dura, ora incentivando a esposa, ora vaiando o Magricela em Desalinho, ora desqualificando a moral da outra, que lhes apontava o “maior de todos”, num gesto que seria ridículo, se não fosse obsceno.

O relato do engraxate estava me deixando preocupado com meu horário. Foi quando alguém – movido pela ânsia de harmonia, paz e concórdia – chamou a polícia, que veio e conduziu a tríade à delegacia. À frente, como disse antes, a esposa, seguida da amante, seguida do Magricela em Desalinho, e seu ridículo rizinho monalísico.

Agradeci ao engraxate pelo pungente e minucioso relato e fui trabalhar. Chego no escritório e conto para Karlota a história e pergunto, ao final: Como é que duas mulheres podem se prestar a tamanho ridículo por conta de um sujeito igualmente ridículo?

- Cláudio, você é ingênuo.

Acreditei que ela fosse dizer “ridículo”.

- ?

- Elas não estavam brigando por ele, bestinha. A esposa estava brigando não por ele, mas pelo fato de a amante ter tomado o que era seu. Não importa se o que era seu era um Magricela em Desalinho. O que estava em jogo era uma questão de brio. A outra invadira seu espaço. A outra – a amante - também não brigava por ele. Ela queria era mostrar para a outra que ela tinha uma cota de participação, e que ele, o Magricela em Desalinho, estava com ela e não com sua rival.

Eu tinha outras coisas a perguntar, mas temi que Karlota adicionasse ao “ingênuo” outros adjetivos. Sentei na minha mesa, liguei o computador e fiquei pensando uma série de coisas ridículas.

Thereza olhou-me e perguntou:

- Acabou?

- Sim, acabou.

- Certo. Olha só, tem uma reportagem da Quem dizendo que a Preta Gil...

De fato, sou de marte. Relativamente ridículo. Previsível, ridiculamente previsível.

1 de abril de 2007

Sete Talagadas

Para Alison


Algumas verdades, que aqui aponto, estão levemente contaminadas com algumas pitadas de mentira. E há mentiras, que aqui exponho, cuja tela invariavelmente é emoldurada com verdades incontestáveis. É que, por vezes, fatos verdadeiros carecem de algumas inverdades, que funcionam mais como cosmético, têm a função acessória de dar ao fato algum brilho. Mulheres bonitas, quando fazem sua pintura, não ganham muito em beleza, mas aqueles cosméticos agregam um discreto valor ao cenário. E, quanto aos fatos mentirosos, eles pedem que os contextualizemos com um mínimo de verossimilhança; para tanto, alguma verdade pode ajudar.

Quando Rogério – num e-mail que ontem me mandou - me contou a história de sua “iniciação” e o que viria depois, pude constatar que aquelas verdades tinham muito de mentira, ou, se eu estiver enganado, muitas daquelas mentiras estavam contaminadas da mais pura verdade.

Rogerio é funcionário da Infraero em Brasília. Sua vida está dividida entre cuidar de seus sete gatos (Parmênides, Heráclito, Homero, Nietzsche, Platão, Penélope e Mimi), trabalhar e escrever crônicas para o Jornal Radical News.

Sei que ele não vai se importar se eu publicar aqui trechos de seu e-mail, cínico que é.

“Luiz, se quer saber, minha brevíssima história com Socorro é uma mentira com altíssimo teor de verdade. Mas eu bem quisera que fosse uma verdade recheada de mentira por todos os lados. Deixo por sua conta, sabidinho, separar o joio do trigo, cristãos dos gentios, gregos de bárbaros.

Meu namoro com Rosane não durou mais que seis meses. Quando terminou, tive vinte dias para restabelecer-me. Sofri, óbvio. Primeiro porque fora ela que me iniciara nos prazeres da carne – desvirginou-me. Segundo porque ela era uma loira linda, dotada de uma arquitetura capaz mover montanhas.

Naquela tarde em que ela me disse que não sentia mais nada por mim, desesperado, fui ao cinema me distrair e tentar esquecer Rosane e seus encantos mil. Em cartaz, um filme que ainda não vira: Seven – Os sete pecados capitais. Pelo título, previ que fosse algum filme de aventura. E aventura envolvendo, obviamente, drogas, policiais, detetives, Robert De Niro, Samuel Lee Jackson, Nova York, etc. Entrei. E me arrependi. O filme, do começo ao fim, era tudo que uma alma em frangalhos precisava para afundar-se ainda mais no lamaçal da dor. Saí da sala com meu sofrimento ampliado cinco vezes. Era tarde quando cheguei em casa. Entrei cabisbaixo e fui pro quarto que dividia com meu irmão, Nonato.

Passados cinco anos sem que nos víssemos ou que nos falássemos, um amigo comum, Sandro, encontrando-me, disse-me que Rosane há muito queria ver-me, mas não tinha nenhum contato. Liguei para ela. “Rogériooooo!!! Não a-cre-di-tooooo!!!”, fez ela, surpresa. “Trate de vir em minha casa. Desde que você sumiu, milhões de coisas aconteceram. Vou te buscar onde você estiver”. De fato, depois que nos vimos, constatei que milhões de coisas tinham acontecido. Mas o mais impressionante, o que mais me deixou mais perplexo foi o fato de ela ter se tornado cafetina. Sim, cafetina. A mulher que eu amei e que me iniciara e que era maravilhosa, tornara-se intermediária, cupido, ponto de apoio, Eros encarnado.


Seu marido, Jorge, era seu sócio. Sua função era basicamente fazer sala para os homens que iam à sua casa. Rosane era responsável pelo intercâmbio.


Quando cheguei em sua casa, ali pelas 20:00h, já estavam ali uns três sujeitos e mais duas garotas, além de Jorge e Rosane.


Rosane perdera muito de seu encanto, mas ainda havia, nítidos, resquícios daquela que amei como um louco, e que como um louco me deixou.


Jorge, hospitaleiro, recebeu-me já com uma lata de cerveja. Tomei quatro latinhas. Incansável no intento de embebedar-me, lá vem Jorge com um copo de vinho, que tomei.


Vamos jogar palitinho? Era Jorge, o incansável, convidando seus convidados. “Só tem uma coisa: é apostado. Quem perder toma uma talagada de pinga. Pura.” Um litro de cachaça foi colocado no centro. Eu, como que predestinado ao sofrimento, perdi sete partidas, uma atrás da outra. Meu saldo agora era: quatro latas de cerveja, dois copos de vinho, sete talagada de pinga. O primeiro indício que tive de que as coisas não iam bem foi quando minhas frases não iam até o final. Sim, estava bêbado.


Nesse ínterim, um gol quadrado e verde estaciona. Era meia-noite. Rosane, inquieta, mais que depressa se aproximou de meu ouvido e disse: “É ela.” Disse-o como se tivéssemos um pacto prévio, como se tivéssemos arquitetado um encontro, como se eu, pelo simples fato de visitá-la, deixasse nas entrelinhas a insinuação de que iria necessitar de seus serviços de cafetina. Ora, eu estava ali em nome dos velhos tempos, caramba! Fui porque me era importante a sua existência no meu passado. Fui para resgatar as boas lembranças de uma história de amor fracassada, ora essa! Dizendo-me “é ela”, Rosane jogou um balde de água fria nos meus poéticos intentos. Falou mais alto nela seu profissionalismo e, pareceu-me, uma espécie de cordialidade, uma espécie de boas-vindas, manifesta em forma de prestação de serviços de alcova. Serviços esses, Luiz, que em momento algum, em momento algum insinuei que quisesse!


O segundo indício de que eu não estava bem foi quando tentei levantar-me e o mundo à minha volta perdera a fixidez.


Fui apresentado a Socorro que, de pronto, pediu que a chamasse de Help, como era vulgarmente conhecida. “Oi, Help.” Mais que depressa, e sem qualquer discrição, tanto Rosane quanto Jorge providenciaram que eu ficasse sozinho com Socorro, digo, Help. Ligaram o som e foram para outro cômodo da casa. E ficaram à espreita, indiscretamente à espreita, visivelmente à espreita, já que até eu, que estava bêbado, percebi a movimentação que denunciava o ardil; um ardil cheio de cochichos, risinhos e pedidos de silêncio aos indiscretos risonhos (que eram os figurantes contratados para dar aquela idéia de amigos que se reúnem para jogar palitinho). Um bando de safados, Luiz.


Às minhas frases inconclusas, Socorro, digo, Help respondia com monossílabos. Às suas perguntas dissílabas, eu respondia com um olhar pretensamente sensual, pretensamente safado, pretensamente canalha, pretensamente cínico. Os resíduos de lucidez que ainda me restavam diziam-me que, para situações como aquelas, era necessário ao homem (usuário de serviços da alcova) que incorporasse à sua personalidade as qualidades acima: sensual, safado, canalha e cínico. É bem verdade que nunca fui um bom ator, Luiz. E eu não tenho a menor idéia se fui sucesso de crítica... e tenho dúvidas se o fui sucesso de público: Help.


Socorro, digo, Help, em face de minha indecisão, e vendo que, se ela não tomasse uma medida, daquele mato não sairia coelho, disse: “Vamo?”. Vamo, disse eu. Mais que depressa, como que num passe de mágica, Rosane surge e, como quem estivesse participando do diálogo, diz: “... mas é o seguinte, Rogério, ela vai dirigindo... ela deixa o carro dela aqui na porta e vocês vão no seu.” Esse foi o terceiro indício de que eu não estava em condições do que quer que fosse.


Entramos no carro e ela dirigiu até o centro de Taguatinga. Lá, como se não bastasse, Socorro, digo, Help me vem com mais cerveja. Tomei. Depois veio com outra bebida que eu juro para você, Luiz, não era água.


Acordei com o sol inclemente batendo em minha cara. O carro, era o meu. O lugar, era a rua da casa de Rosane. À minha esquerda, um corpo desconhecido. Era o quarto indício de que eu estava, de fato, fora de mim nas horas anteriores. Eu estava todo suado. A cabeça doía. Olhando a mulher no banco da esquerda, que estava totalmente reclinado, vasculhei na memória alguma evidência, algum elemento que a fizesse familiar ou, no mínimo, conhecida. Nada. E, agora que estava lúcido, enxergava melhor. A mulher tinha os cabelos num redemoinho tsunâmico e suava feito cuscuz.


Como já era manhã de domingo, vi grupos de pessoas que passavam olhando para dentro do carro. Eram Testemunhas de Jeová. Testemunhas de Jeová sempre andam em grupos. E, sempre que podem, olham para dentro de carros onde há suspeita de fornicação. Abri o vidro do carro. Socorro, digo, Help acordou. Limpou com o braço uma baba que lhe escorria pelo canto esquerdo da boca; tentou, inutilmente, aplacar a fúria de seus cabelos, que estavam num estado capilarmente lastimável, e devolveu a saia à sua original condição de recato.


Nesse momento, Luiz, penso em todas as besteiras que um homem comete. E penso em mim, como o maior desses homens. Sim, porque eu sou um besta, Luiz.


Luiz, quando ela, afinal, resolveu falar alguma coisa, percebi que, pela regularidade de seus dentes (inferiores e superiores), nenhum deles era resultado da natureza. Nenhum deles, Luiz, era verdadeiro. Se fossem, teríamos uma proeza da natureza, teríamos a perfeição (od) ontológica.


Esse, Luiz, foi o quinto indício de que eu estava no mais alto grau de bebedeira que uma besta quadrada pode alcançar.


Talvez, Luiz, você queira saber o que resultou de tudo isso. Só lhe digo uma coisa: naquela mesma manhã, Rosane, a profissional Rosane, me ligou. “E aí, comeu?”.


Dentro de mim, minha alma não podia aceitar o ponto a que cheguei e o ponto a que chegou Rosane. Pareceu-me que, associado à minha ultra-ressaca, uma desilusão e uma tremenda decepção com a vida se apoderavam de mim. Naquele torpor, naquela situação terrível, Luiz, ironicamente, precisei de socorro, digo, help.